Por Jorge Felix – Presidente do Conselho Administrativo do The Conversation Brasil e Professor de Pós-Graduação em Gerontologia, Universidade de São Paulo (USP) – The Conversation Brasil
Depois de um apagão de dados nos últimos anos, que provocou revisões sucessivas, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio Contínua (PnadC) do segundo trimestre, atualizando números sobre o acelerado envelhecimento da população. São 33,4 milhões de idosos (60 anos ou mais) ou 15,5% do total de habitantes.
Curioso observar que, antes da reforma da Previdência Social em 2019, a divulgação desses dados era seguida sempre de reportagens sobre a necessidade de alteração no marco etário para a aposentadoria sob pena de uma catástrofe fiscal. Agora, o destaque na imprensa coube mais à importância de uma convivência intergeracional, como se os desafios estruturais já estivessem equacionados pela citada alteração previdenciária.
É preciso sublinhar que a dinâmica demográfica é um processo e, assim, exige uma preparação constante do Estado para enfrentar transformações sociais inéditas. No entanto, a correlação quase obsessiva sempre feita entre envelhecimento e previdência se enfraquece no debate em comparação a outros temas socioeconômicos contemporâneos. A despeito de algumas vozes ainda insistirem em novas reformas no sistema de aposentadoria, outros temas emergem na agenda como prioritários na transição para o superenvelhecimento.
Por exemplo, o superendividamento da população e a desigualdade do nosso sistema tributário, por ora colocados na agenda pelo governo Lula. São problemas que dizem respeito diretamente às possibilidades de o Estado garantir bem-estar na velhice e a economia poder se mostrar vigorosa e competitiva globalmente no futuro ainda mais envelhecido.
Crédito consignado e geração de novas dívidas
O governo acaba de apresentar o programa Desenrola Brasil e, nesse momento, convida instituições financeiras, operadoras de cartão de crédito, grandes varejistas e empresas de gás, luz e água a renegociarem as dívidas de mais de 70 milhões de pessoas que estão com seus nomes negativados.
Essas pessoas são as vítimas dos juros altos e da morosidade do Estado em fornecer bens e serviços. No caso das pessoas idosas, esse endividamento se desdobra em novas dívidas por meio do crédito consignado, quase sempre para o socorro da família. Logo, esse mecanismo impossibilita qualquer planejamento financeiro para a velhice ou condena a pessoa idosa a uma dívida perene. Às vezes até à morte. Em agosto de 2023, 18,3% dos 71,4 milhões de negativados no Brasil tinham mais de 60 anos. Isso representa quase 40% da população idosa do país.
Essa realidade derruba dois argumentos sempre presentes no debate: o primeiro é o de que o brasileiro não poupa por questões culturais ou de comportamento. O segundo, de que não o faz por falta da tal “educação financeira”. A capacidade de poupança – tanto em termos macro como microeconômicos – é condição indispensável para o bem-estar de uma sociedade a cada dia mais envelhecida.
Nos países ricos, o Estado de Bem-Estar Social criado após a Segunda Guerra Mundial foi o responsável pela situação privilegiada dos baby boomers do Hemisfério Norte. Embora, é preciso destacar, o sistema tributário regressivo hoje esteja fragilizando esse cenário.
A condição crônica de superendividamento (ou mesmo endividamento hedge) da população idosa brasileira revela também os limites de se poupar para a velhice fora do âmbito de sistemas de repartição. O perigo é que, na prática, esses sistemas, no mundo todo, como nos alerta o economista francês Bruno Palier em seu livro “Reformer les retraites” (“Reformar as aposentadorias”, em tradução livre), estão se transformando em sistemas de assistência social.
Isso porque o valor da maioria dos benefícios pagos é igual a um salário mínimo (ou o minimum vieillesse, no caso francês). O quadro é mais grave quando se sabe que essa é a totalidade da renda da grande maioria da população idosa brasileira, pois só os mais ricos conseguem poupar em previdência privada. Uma análise dos Boletins Estatísticos de Previdência Social (BEPS) nos últimos 27 anos nos permite analisar a dinâmica perversa do sistema brasileiro.
Depois de sucessivas reformas da Previdência, o percentual de benefícios concedidos (novos) pelo Regime Geral de Previdência Social (INSS), ou seja, aposentadorias contributivas, no valor de um salário mínimo (piso previdenciário) saltaram de 25,02% em 1996 (ano da edição do primeiro BEPS) para 63,5% em 2023.
Quanto aos benefícios emitidos (pagos), o percentual saiu de 29,01% para 65,25%. Isso significa dizer que, desde 1996, houve um empobrecimento da população aposentada, em quase a sua totalidade idosa. Dos 24,8 milhões de benefícios pagos anualmente pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS), 19,5 milhões recebem apenas um salário mínimo. Enquanto aqueles com valor no teto do INSS estacionaram em menos de 1%.
A urgência do combate à desigualdade
Esse cenário nos permite afirmar que para fazer frente às demandas de cuidado e saúde da população superenvelhecida, o Estado necessitará rever sua política fiscal, pois o segmento idoso, salvo uma pequena parcela com renda alta, ampliará sua dependência de serviços públicos, sobretudo o Sistema Único de Saúde (SUS), em toda a sua integralidade. Em outras palavras, o risco é poupar em uma coluna – com o argumento de conflito intergeracional sempre presente no debate, isto é, de que o país gasta muito com idosos e pouco com crianças e adolescentes – e aumentar a despesa em outra coluna.
Um Estado capaz de prover esses serviços, por sua vez, dependerá de uma arrecadação mais progressiva e muito mais equânime em um país tão desigual. Dito de outra maneira, o que precisa ser discutido é menos a pobreza absoluta e muito mais a desigualdade, seja de distribuição de renda ou riqueza. Mesmo que a população idosa, comparativamente, apresente menor risco de pobreza em relação a outras faixas etárias, esse quadro é menos relevante diante do aumento da tendência de risco de empobrecimento.
É impossível garantir que os endividados de hoje não cairão novamente na mesma situação logo ali adiante, em uma economia extremamente financeirizada. A única forma de mitigar esse risco é o Estado readquirir capacidade de fornecer bens e serviços básicos. Isso depende de uma ampliação da arrecadação de impostos. E muito mais: de um sistema tributário mais progressivo. Reduzir a desigualdade na cobrança de tributos é um passo inevitável para ampliar as perspectivas da velhice dos jovens de hoje.
Esse também é um desafio global. Nos últimos 50 anos, segundo os economistas Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, no livro “Le triomphe de l’injustice” (sem tradução em português), os Estados Unidos diminuíram o imposto de renda dos 1% mais ricos de 50% para 23%, o que proporcionalmente os deixou menos taxados do que as classes mais pobres. Só a classe média acumulou 1 trilhão de dólares em dívidas com a universidade dos filhos, comprometendo a poupança para a velhice de toda uma geração.
No Brasil, desde os anos 1990, os ricos, empresários e grandes empresas ficaram imunes de impostos sobre lucros e dividendos. Saez e Zucman atestam que a regressividade somada à demografia tem sido o combustível para o endividamento e a concentração de riqueza no planeta – uma das maiores ameaças à pujança das sociedades superenvelhecidas. Diga-se de passagem, bem maior do que o desequilíbrio distributivo intergeracional.
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