Por Heloisa Villela
Assmaa Abu Jidian se levantou no meio da noite para atender o chamado via mídias sociais. Ela tem tentado começar a noite cada vez mais tarde, para não acordar duas ou três da manhã e passar o resto da madrugada de olhos abertos. Sem descanso. “Não sei se vou estar viva amanhã ou no próximo segundo”, disse, tentando não levantar a voz para não acordar o marido e os filhos. São quatro ao todo, a mais velha de 15 anos e o mais novinho de apenas quatro.
Em um português perfeito, ela contou ao ICL Notícias como tem sobrevivido até agora, com a família, na Faixa de Gaza. Assmaa mora em Deir Al Balah, 11 quilômetros ao norte de Khan Yunis, cidade que ficou conhecida no Brasil porque vários brasileiros se abrigaram lá antes de seguir para Rafah e cruzar a fronteira com o Egito onde embarcaram para Brasília ou São Paulo em vôos da FAB. Asmaa até tentou se juntar a esses grupos, mas não conseguiu a documentação necessária.
Ela ainda tem os boletins da escola que frequentou em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, dos 4 aos 18 anos. Antes de entrar na faculdade, a mãe de Assmaa decidiu levar os filhos à Palestina para eles se reconectarem com os parentes e aprenderem o árabe. A visita se transformou em mudança permanente. Dois anos depois, Assmaa já estava casada e não pensava mais em voltar ao Brasil, apesar dos bons amigos que fez e manteve no Rio. Hoje, muitos procuram notícias, escrevem, telefonam.
“Essa guerra me fez ‘voltar’ para o Brasil”, diz ela, e explica: hoje ela faz vídeos e postagens na internet em português. Antes de a invasão e o genocídio começarem, fazia tudo em árabe. Ela lamenta que a mãe nunca se preocupou em naturalizar os filhos. Se tivesse tomado as providências, Assmaa poderia ter deixado a zona de conflito com o marido e os filhos.
E ele, o marido, gostaria de ir para o Brasil?
“Caraca! Ele sonha com isso”, diz a brasileira-palestina no melhor carioquês possível.
Mas a possibilidade de deixar Gaza para território mais seguro parece muito distante. Assmaa continua morando no apartamento que a família ocupa, em um prédio dos parentes do marido. Uma lateral do edifício foi destruída por uma bomba, mas o apartamento dela continua de pé, com algumas paredes rachadas que dificilmente resistirão a uma outra explosão. Sem prestar muita atenção nesse “detalhe”, ela se preocupa com tudo mais que enxerga em volta.
A cidade, antes um lugar tranquilo, está lotada de gente desempregada e faminta. Em algumas barracas erguidas no centro, às vezes ainda se encontra alguma comida à venda, remédios ou um profissional de saúde. Mas emprego é algo raro e dinheiro também. Assmaa se sente privilegiada em meio à destruição que hoje é o único cenário à vista.
“Outro dia eu estava deitada, com dois cobertores, e ainda assim sentia frio. Fiquei pensando nas pessoas que estão dormindo na rua, na praia, naquela areia úmida na pele… por isso muita gente está morrendo congelada”, disse.
Atender as crianças, evitar que elas fiquem eternamente destruídas emocionalmente, distantes dos estudos, sem falar em acesso à comida, são as outras preocupações que impedem o sono por mais de quatro horas por noite.
Assmaa também chama a minha atenção para problemas óbvios, como a falta de luz. De dia, ela faz tudo o que pode. Cozinha, se tiver o que cozinhar. Lava roupa na mão porque não tem outro jeito, e arruma o que é possível, antes do sol se pôr e a casa mergulhar na escuridão. Mas a internet, a comunicação com o mundo, fora da Faixa de Gaza, ainda é possível. Porém, Assmaa já não vê nisso uma grande vantagem já que as imagens e informações de Gaza chegam ao mundo todo, mas o genocídio continua.
“Não tenho mais o que falar! Que histórias vocês ainda não sabem?”, me pergunta, do outro lado da linha, lembrando os casos mais emblemáticos que o mundo inteiro conheceu no último ano. O menino queimado vivo no hospital, com o soro ainda na veia; o pai que foi registrar o nascimento de filhos gêmeos e voltou com os papéis e encontrou as crianças mortas por um ataque israelense; o médico do hospital Al Shifa, torturado e morto pelos militares de Israel e mais uma série de exemplos que são de conhecimento público. Mundial.
E ainda assim, nada muda.
Os ataques, os bombardeios, a destruição continuam.
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Abaixo, veja o relato de Assmaa Abu Jidian sobre a situação de Gaza em uma live feita no dia 24 de novembro de 2024, no Instagram
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