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Porque a anistia não é a boa solução

Anistia tem consequências políticas. Podem não ser imediatamente visíveis, mas são bem previsíveis
13/01/2025 | 16h31

O argumento que vejo mais usado pelos que defendem a anistia para os acontecimentos do dia 8 de janeiro é o de que os países “precisam olhar para a frente e não para trás”. Por mais tentador que seja este discurso, o seu principal problema é o seguinte: quando um país decide não atuar contra o que aconteceu, torna-se, ele próprio, dono da política que permitiu o uso de força para impedir a transferência democrática de poder. Não apenas cúmplice, mas responsável. Só há, neste caso, duas atitudes – punir ou encobrir. Infelizmente, ignorar o que aconteceu não é uma política neutra, mas uma política ativa que tornaria o atual Estado brasileiro e os seus tribunais em agentes das políticas que conduziram a esses atos de violência. Este é o dilema. Não se trata de maior ou menor compreensão com os erros das pessoas; não se trata de ter maior ou menor tolerância com os crimes que muitos cidadãos cometeram sem consciência do que estavam a fazer ( que acredito que existissem, naquela multidão); trata-se, isso sim, de compreender que desconsiderar o que se passou em nome de um “ olhar para a frente” significaria não apenas encobrir o que se passou, mas ficar moralmente responsável pelas politicas antidemocráticas que conduziram a esses atos de violência.

Vem, aliás, muito a propósito lembrar que este argumento é um velho conhecido dos militares. Faz parte da já longa tradição militar responsabilizar um comandante pelos crimes dos seus subordinados, nos casos em que tem conhecimento deles e não os denuncia como deveria. As modernas formulações do direito internacional relativas a crimes de guerra vão no mesmo sentido – não só os crimes são puníveis, mas também a ausência de reporte ou de denúncia por parte das chefias militares. Em síntese, quando um comandante militar encobre crimes de guerra torna- se moral e penalmente responsável por eles, mesmo não os tendo cometido. É claro que há nuances óbvias neste argumento. Aquiescer ou apoiar expressamente é diferente. A responsabilidade é maior nos casos em que o comandante expressa uma “concordância simbólica” com os crimes cometidos. Diferente responsabilidade existe nos casos em que o comandante se limita a encobrir a conduta criminosa. Seja como for, a invocação da doutrina penal militar ajuda a tornar o ponto mais claro: se o governo ou o parlamento brasileiro se recusarem a julgar e punir estes crimes tornam-se responsáveis por eles. Não se trata apenas de encobrir os crimes – trata-se de passar a assumir como sua a política que conduziu a violência. É isto que significa tornar se dono da política. Este é o dilema político que o Brasil enfrenta.

Um ponto final, que tem sido mais referido no debate. A anistia tem consequências políticas. Podem não ser imediatamente visíveis ou sequer desejáveis, mas são bem previsíveis. Uma delas é, obviamente, a tolerância relativa ao uso da violência para resolver disputas políticas. De certa forma, foi o que aconteceu com a anistia dos crimes da ditadura militar. A lei foi aprovada por um parlamento democrático que não tinha essa intenção, mas teve, sem dúvida, essa consequência – e ela era totalmente previsível. Hoje, sabendo o que sabe da sua história recente, o Brasil não tem o direito de apreciar com ingenuidade o argumento “olhar para a frente, não para trás” – todos sabemos o que (desta vez, intencionalmente) transporta consigo.

Nunca me foi simpática a judicialização da política. Sempre achei que os traumas políticos nacionais devem ser resolvidos com prudência, com moderação e com espírito de tolerância. Conhecer a verdade do que se passou é talvez o mais importante (tenho a maior admiração pela invenção sul-africana das comissões da verdade e da reconciliação). Mas sei também o que significa deixar nas mãos dos conspiradores e dos golpistas a interpretação do passado. É por essa razão que não vejo outra solução que não seja a de julgar com correção (com recurso ao devido processo legal) os acontecimentos do dia 8 de janeiro. Qualquer solução de anistia tornaria o Estado brasileiro dono (isto é, responsável moral) das políticas que permitiram aquela violência. É por esta razão que a anistia não me parece ser a boa solução.

 

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