Alguns meses antes de morrer, a filósofa mais inteligente que já conheci me disse assim: “o aniversário é só uma maneira de contar o tempo, mas o tempo não é contado, o tempo é vivido.” Em poucas palavras ela resumiu um grande debate entre historiadores. O tempo é uma convenção social, ou seja, somos nós humanos que, a partir de nossa observação da natureza, criamos uma convenção de como contar o tempo. Esse termo-conceito foi, ao longo da história das sociedades humanas, utilizado de diversas formas e sentidos, interpretando a duração relativa das coisas, criando uma espécie de conexão entre passado, presente e futuro. Reparem, não há uma situação cotidiana que não tenha a palavra “tempo” como o termo chave da legitimação de nossa existência no mundo: “idade”, “era”, “momento”, “minuto”, “instante”, “antes”, “depois” e assim por diante. Qualquer narrativa, seja a desta coluna às vésperas do “Ano Novo”, seja aquela do seu aniversário de um aninho com aquela roupinha estranhíssima, todas elas são narrativas que se situam num certo tempo.
Tudo isso para dizer aos leitores e leitoras – que neste instante nos leem – que o dia 1 de Janeiro como “ano novo” foi uma invenção muito recente da História e que se situa lá no calendário romano, quando o cônsul Júlio César (ele mesmo, o famoso conquistador e tirano esfaqueado dezenas de vezes no senado romano) instituiu o “novo começo”, inspirado pelo deus Jano (Janus, por isso “Janeiro), deus dos começos, mudanças e transições. Sabidos os romanos, não?! Afinal, trata-se exatamente disso: nós, as sociedades humanas, criamos diversas formas de reinventar nossa vida reinventando o tempo, tempo que tentamos sempre controlar em função de nossos interesses no mundo.
A despeito das voltas da Terra em torno do Sol e de si mesma, mas também em função desses movimentos primordiais, contamos o tempo das colheitas, das estações do ano, do ritual religioso, em suma, organizamos nossa vida no mundo em função de convenções sociais do tempo. Há sociedades que entendem o tempo como um continuum, num eterno presente, sem a divisão tão cara às formas ocidentais de contar o tempo, como o tal do nosso passado, presente e futuro. Também há o tempo de “revolucionar” o tempo, tal qual fizeram os franceses ao instituírem o “Calendário Revolucionário” durante a Fase do Terror da Revolução Francesa (1789-1799), afinal era preciso pôr fim ao tempo da tirania dos reis e da igreja, ceifar cabeças na guilhotina e abolir o calendário tirano da era gregoriana. Boa ideia, não?
Sim, amantes do tempo, é isso mesmo. O tempo é uma invenção humana. Não foi instituído por deus ou por deuses e deusas do cosmos primordial. Foi em função de nossas tentativas de dominar nossa natureza (sempre complexa e passageira) e a natureza do mundo, construindo nossa vida material, que nomeamos e criamos tais formas de interpretar e intervir no “tempo do mundo”, tempo sempre mais profundo, que é muito anterior à existência humana na terra. Por isso pensem bem, nós precisamos dos rituais para aplacarmos nossas dores no mundo: “um novo tempo, “uma nova era”, “um feliz ano novo” e essas expectativas todas que nos repõem supostamente renovadas e renovados no dia 1 de Janeiro. Só tem um detalhe, que de detalhe não tem nada: sairá você renovada desse ritual? Ou na aceleração alucinante do tempo do capital voltará ainda mais cansado e ansioso com os deuses do tempo? Escolherá você o tempo de renovação do candomblé, do calendário chinês, do islamismo, do judaísmo ou do cristianismo? Pois eu lhes digo em verdade: escolheram por você a religião do capital. Por isso, entrará no ano novo (que já tem mais de 500 anos) prontinho para ser explorado por mais “um aninho”, quando notar, ou “no instante” em que notar, já estará velho, preocupado com o plano de saúde, com a aposentadoria e com a finitude do “tempo da vida”, a morte chegará, a mesa estará posta e o tempo vazio, fatiado, enlatado, industrializado.
O que fazer então? Ler o poema do Drummond sobre a “receita de ano novo”? Cantar mais uma vez a musiquinha da Globo? A festa não tem sido de ninguém (vai, talvez dos 1% mais ricos). Só neste “ano-convenção” de 2023 tivemos mais uma vez um mundo invariavelmente cheio de guerras (Ucrânia, Palestina, etc.) e um Brasil de uma desigualdade tão brutal que já virou paisagem natural. Mas e aí, professor, o que fazer? Olha, nem tango argentino dá mais…me disse o poeta Manuel Bandeira lá do além, bem longe dos cachorros do Milei.
Mas como meu coração não se cansa de ter esperança, deixo aqui minha “receita de ano novo”: se puderem, abracem seus pais, amigos e amados de todo tipo. E façam aquela receita que vocês gostam. Eu, por exemplo, farei rabanadas, afinal, a minha filósofa favorita, minha mãe Sueli da Silva, saltou fora da ponte da vida em 2023, ano insuportavelmente doloroso. Ano do eterno retorno de um único dia triste, ano sem fim. Pela primeira vez ela não estará aqui para as rabanadas que fazia com o maior afeto do mundo. Cabe a mim, nesse recomeço, começar pelas rabanadas, afinal, manter certa tradição também pode ser o início da renovação que pulsa dentro de você. Carrego os despojos e ouço de longe a voz de Quincas Borba: “ao vencedor, as rabanadas!”
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