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Jorge Mizael

Cientista político, doutorando pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), com foco em comportamento político e estudos sobre mudanças constitucionais. Fundador da Metapolítica, consultoria premiada no Oscar da Comunicação Política Mundial em 2020 pela The Washington Academy of Political Arts Sciences. Indicado, em 2021, como Consultor Político Revelação pela mesma instituição. Colunista do portal ICL Notícias, onde analisa questões políticas e institucionais com ênfase em governança e a relação entre o Legislativo e o Executivo.

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Emendas Parlamentares: novas regras, velhos jogadores

O Congresso Nacional aprova novas regras para rastrear as emendas parlamentares e promete enterrar o orçamento secreto. Mas será o bastante?
14/03/2025 | 08h33
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As emendas parlamentares ao Orçamento da União são instrumentos pelos quais deputados e senadores podem direcionar recursos do orçamento federal para projetos e gastos de seu interesse. Elas se dividem em diferentes modalidades — emendas individuais (de cada parlamentar), de bancadas estaduais (das delegações de cada estado) e de comissões temáticas do Congresso. Nos últimos anos, essas emendas ganharam grande relevância política e financeira, chegando a somar R$ 52 bilhões no Orçamento de 2025, contra R$ 6,1 bilhões em 2014. Esse crescimento expressivo reflete mudanças legais que tornaram muitas emendas impositivas (de execução obrigatória pelo Executivo) e uma maior apropriação do orçamento pelo Legislativo.

Entretanto, cresceram também as críticas ao modelo de destinação dessas verbas. Observou-se que, embora as emendas permitam atender necessidades locais apontadas pelos parlamentares (que alegam conhecer de perto as demandas de suas bases eleitorais), elas podem igualmente fragilizar o planejamento nacional e a eficiência dos gastos públicos. Essa fragmentação orçamentária levanta dúvidas sobre o equilíbrio entre a atuação do Legislativo e as prerrogativas do Executivo em definir prioridades de gasto.

Além do impacto na execução de políticas, existe crítica sobre transparência em parte considerável dessas emendas, o que suscitou denúncias de uso político indevido e até corrupção. O caso mais notório foi o chamado “orçamento secreto”, revelado em 2021. Tratava-se do esquema das emendas de relator (RP9), em que o relator-geral do Orçamento distribuía verbas a pedido de parlamentares aliados, porém sem divulgar os autores dos pedidos. Nesse arranjo, R$ 3 bilhões foram direcionados a alguns congressistas escolhidos, que decidiram onde aplicar os recursos — boa parte em compra de máquinas agrícolas (tratores) com preços superfaturados. As verbas funcionavam para comprar apoio político. Diante da repercussão negativa, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, em dezembro de 2022, que essas emendas de relator violavam preceitos constitucionais (como publicidade e impessoalidade) e as declarou inconstitucionais.

Mesmo após o fim do RP9, porém, persistiram problemas de falta de transparência no uso das emendas. Os recursos antes concentrados no orçamento secreto foram redistribuídos: parte foi incorporada às emendas individuais de parlamentares e a maior parcela foi transformada em emendas de comissão (RP8). Esperava-se que, seguindo as regras existentes, as emendas de comissão — apresentadas oficialmente pelas comissões permanentes do Congresso — tivessem caráter mais institucional e transparente. Na prática, porém, surgiram novos questionamentos também nesse novo modelo. Muitos suspeitavam que as emendas de comissão estavam servindo para manter a lógica do orçamento secreto, agora sob outra forma, já que não havia identificação pública do parlamentar “padrinho” por trás de cada indicação de despesa.

Esse contexto de pressões levou os três Poderes — Legislativo, Executivo e Judiciário — a buscarem conjuntamente uma solução. Em 2023 e 2024, o STF, em sucessivas decisões, condicionou a liberação de recursos de emendas à adoção de critérios de transparência e rastreabilidade. Em agosto de 2024, por exemplo, o ministro Flávio Dino (atual relator do caso no STF) suspendeu a execução de todas as emendas de pagamento obrigatório — incluindo individuais, de bancadas e de comissão — até que fosse apresentado um plano de acompanhamento dessas despesas. Com bilhões de reais bloqueados e a votação do Orçamento de 2025 atrasada, formou-se um impasse que exigiu negociação. Foi nesse cenário que, ontem 13/03, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Resolução 1/2025, alterando as regras de funcionamento da Comissão Mista de Orçamento (CMO) para adequá-las ao plano de transparência e rastreabilidade das emendas parlamentares acordado com o STF. A seguir, detalharemos as mudanças estabelecidas por essa nova resolução e analisaremos suas implicações.

Explicação das mudanças

O Projeto de Resolução 1/2025, aprovado em sessão conjunta do Congresso Nacional, promove uma série de alterações no processo orçamentário. O objetivo central foi ajustar a legislação interna do Congresso aos compromissos de transparência e controle assumidos perante o STF. A proposta foi elaborada pelas Mesas Diretoras das duas Casas em cooperação com o Poder Executivo — por meio da Advocacia-Geral da União (AGU) — e teve como pano de fundo um acordo entre Legislativo, Executivo e Judiciário para viabilizar a liberação das emendas travadas. O STF, que acompanhava de perto a questão, solicitou formalmente mudanças nas regras para aumentar a fiscalização dessas verbas. Assim, o conteúdo da resolução reflete o chamado plano de trabalho apresentado ao ministro Flávio Dino (relator no STF) e posteriormente homologado pela Corte.

Entre as principais mudanças introduzidas pelo PR 1/2025, podemos resumir nos seguintes eixos:

  • Identificação obrigatória dos autores e beneficiários das emendas: a partir de 2025, fica proibido empenhar (reservar no orçamento) qualquer emenda sem que esteja identificada a autoria parlamentar da indicação e o beneficiário final dos recursos. Essa regra vale para todas as modalidades — individuais, de bancada e de comissão. Na prática, encerra-se a possibilidade de destinar verbas de forma anônima. As Mesas da Câmara e do Senado se comprometeram a registrar nominalmente cada congressista responsável por cada destinação orçamentária, atendendo à principal exigência do Supremo. Ou seja, mesmo no caso de emendas coletivas (de comissão ou bancada), será necessário explicitar qual parlamentar sugeriu cada parcela do recurso.
  • Atas e registro formal das decisões colegiadas: para garantir rastreabilidade, a nova resolução estabelece que as decisões que resultam na apresentação de emendas devem ser documentadas em atas formais das reuniões das bancadas estaduais ou comissões permanentes correspondentes. Foram incluídos anexos com modelos padronizados de atas para essas reuniões. Por exemplo, uma emenda de bancada estadual agora deverá vir acompanhada da ata da reunião da bancada que a aprovou, assinada por no mínimo 3/5 dos deputados e 2/3 dos senadores do respectivo estado. Da mesma forma, emendas de comissão precisam constar de ata de reunião da comissão, indicando as deliberações tomadas. Essas atas servirão como comprovantes públicos de como foi decidida a destinação do recurso e serão disponibilizadas tanto na página da comissão permanente envolvida quanto no site da CMO.
  • Rito transparente para emendas de comissão (RP8): as emendas apresentadas pelas comissões permanentes ganharam um rito específico visando abertura e colegialidade. O texto determina que todos os parlamentares poderão encaminhar sugestões de emendas às comissões por meio de um sistema eletrônico próprio. Em seguida, cada comissão designará um relator interno para compilar e analisar as sugestões recebidas. O relatório desse relator, com as emendas selecionadas, será votado na comissão e, se aprovado, encaminhado à CMO junto com a ata da reunião deliberativa. Assim, formaliza-se o processo para evitar que essas emendas sejam fruto apenas de acordos informais. Após a aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA), quando chega o momento de detalhar a execução, a resolução estabelece que os líderes partidários, em conjunto com suas bancadas, definirão a destinação dos recursos das emendas de comissão. Essa indicação partidária, entretanto, não escapa à transparência: deverá haver uma ata da bancada partidária registrando a decisão, aprovada pela maioria de seus membros, e a própria comissão temática terá que votar essas indicações em até cinco dias, para então encaminhá-las ao Executivo. Caso seja necessário alterar alguma indicação já feita, o presidente da comissão deverá solicitar ajustes — isto é, nenhuma mudança de destinação ocorrerá sem passar novamente pelos trâmites oficiais. Aqui pretende-se impedir o chamado “rateio” oculto de emendas de comissão, em que antes uma emenda genérica era posteriormente fatiada para diversos fins sem transparência. Agora, cada parcela deverá estar respaldada por documentação identificando quem propôs e onde será aplicada.
  • Novas diretrizes para emendas de bancadas estaduais (RP7): no caso das emendas coletivas de bancadas dos estados, muitas regras de transparência já estavam presentes na Constituição (como quórum qualificado de aprovação pelos parlamentares do estado). A resolução reforça que a apresentação da emenda deve vir acompanhada da ata da reunião da bancada estadual correspondente, com as assinaturas requeridas. Adicionalmente, introduziu-se uma exigência de justificativa mais robusta para cada emenda: a justificativa agora deve conter elementos que permitam identificar a relevância social e econômica do projeto e os benefícios esperados para a população atendida — antes exigia-se somente cronograma de execução e fontes de financiamento. Também ficou explícito que, se uma bancada começar a financiar uma obra ou projeto, deverá continuar alocando recursos nos anos seguintes até sua conclusão, evitando abandonos no meio do caminho. Aliás, priorizar a conclusão de obras inacabadas tornou-se um princípio: de até 11 emendas possíveis por bancada, 3 devem ser exclusivamente destinadas à continuidade de obras já iniciadas. Essa diretriz busca combater a proliferação de obras iniciadas e não terminadas por falta de orçamento nos anos seguintes.
  • Restrição e detalhamento do escopo das emendas: a resolução ajustou alguns limites para evitar dispersão excessiva de recursos. Por exemplo, vedou-se apresentar emendas cuja execução envolva mais de um ente federativo ou entidade privada, salvo em casos específicos (como repasses a fundos municipais de saúde). Projetos de alcance regional, metropolitano ou nacional foram exceções contempladas, mas devem ser claramente identificados. Quando a emenda de bancada for destinada a obras, exige-se descrição precisa do objeto (não mais projetos genéricos que depois são subdivididos). E se for necessário destinar recursos a um estado diferente daquele da bancada (por exemplo, financiar algo em outro estado), somente será permitido se for para a matriz de uma entidade que tenha atuação no estado da bancada ou se for um projeto de abrangência nacional, em outras palavras, acaba a prática de uma bancada estadual alocar recursos em benefício de outra unidade da Federação sem justificativa ligada a interesse nacional ou institucional.
  • Transparência nas emendas individuais “Pix” (transferências especiais): as chamadas “emendas Pix” — emendas individuais pagas via transferência especial, diretamente ao caixa de estados ou municípios, sem convênio — também foram alvo de mudança. Essas emendas vinham sendo criticadas pelo baixo nível de transparência quanto ao uso final do dinheiro. Pela nova resolução, ficou estabelecido que as emendas de transferência especial devem ser aplicadas preferencialmente na conclusão de obras inacabadas. Embora seja uma orientação genérica (não uma obrigação estrita), ela sinaliza a preocupação em dar destino mais claro e útil a esses recursos. Além disso, no contexto do plano de rastreabilidade, o governo federal implementou melhorias no Portal da Transparência para acompanhar essas transferências: novos filtros que permitem pesquisar por município beneficiado, integração dos dados da emenda com eventuais convênios relacionados, e detalhamento da localidade de aplicação dos recursos. Tais aprimoramentos atendem à demanda de tornar visível para a sociedade o caminho do dinheiro, mesmo quando ele é repassado sem destinação prévia específica.
  • Papéis institucionais fortalecidos: a resolução também reforçou instâncias de controle interno do processo orçamentário. A CMO recebeu a atribuição de editar normas complementares especialmente sobre a análise de admissibilidade de emendas. E o já existente Comitê de Admissibilidade de Emendas passou a ter obrigação de divulgar previamente as diretrizes e critérios que utilizará para avaliar se uma emenda é admissível ou não (antes mesmo da abertura do prazo de apresentação de emendas). Isso visa evitar decisões arbitrárias ou casuísticas sobre que emendas podem ou não ser incluídas no orçamento, trazendo mais previsibilidade e isonomia ao processo.

O Projeto de Resolução 1/2025 introduziu uma série de regras procedimentais e de transparência que modificam o rito das emendas parlamentares. Vale destacar que, além das mudanças no rito das emendas, a Resolução 1/2025 prorrogou o mandato da atual Comissão Mista de Orçamento até a aprovação do Orçamento de 2025, para garantir continuidade na aplicação das novas regras durante a transição deste processo conturbado.

Análise das implicações

A aprovação dessas novas regras traz implicações importantes para a relação entre o Executivo e o Legislativo, assim como para a transparência pública e o controle social do Orçamento. Em teoria, as medidas representam um avanço na fiscalização das emendas parlamentares, mas também levantam alguns pontos de atenção quanto a possíveis efeitos colaterais e limitações.

Do lado positivo, o principal ganho é evidente: maior transparência. Com a exigência de identificar o “padrinho” de cada emenda e registrar formalmente as decisões de bancadas e comissões, reduz-se o espaço para negociações às escondidas. A opacidade do antigo orçamento secreto, em que não se sabia qual parlamentar havia direcionado determinada verba, tenderá a deixará de existir — agora, “não será mais possível empenhar emendas sem a identificação do deputado ou senador que fez a indicação e da entidade que vai receber os recursos”. Essa clareza tende a inibir práticas de clientelismo e troca de favores pouco republicanas. Por exemplo, na vigência do RP9, um parlamentar podia obter milhões em recursos para sua base eleitoral em troca de apoio político, sem que os cidadãos ou órgãos de controle pudessem associar aquele gasto ao seu nome. Com a rastreabilidade nominal, isso muda: tanto a imprensa quanto a sociedade civil organizada poderão monitorar quem está patrocinando o quê no Orçamento.

Outro efeito positivo esperado é um maior equilíbrio institucional na execução orçamentária. O Legislativo continuará a ter um papel expressivo na alocação de recursos (afinal, o volume de emendas permanece elevado), porém agora sob um arcabouço mais previsível. A transparência funciona como um freio a eventuais excessos: sabendo que suas indicações serão publicadas, os parlamentares talvez se sintam menos inclinados a direcionar verbas para entidades de fachada ou para propósitos pouco defensáveis. Igualmente, o Executivo ganha um pouco mais de segurança jurídica e administrativa, pois as regras do jogo ficam claras. Antes, o governo federal ficava numa posição delicada — precisava liberar recursos negociados nos bastidores, sob risco de desagradar sua base no Congresso, mas, ao mesmo tempo, essas liberações opacas podiam acarretar suspeitas e ingerência do Judiciário. Agora, com critérios transparentes definidos, o Executivo pode se apoiar nessas normas para recusar pedidos que não atendam aos trâmites (por exemplo, se não houver ata registrando determinada indicação, o recurso não poderá ser pago). Em essência, o que se espera é uma relação mais institucionalizada entre os Poderes na questão orçamentária: as emendas continuam como um instrumento de poder do Legislativo, mas seu uso terá de seguir procedimentos mínimos e publicidade que permitem controle mútuo e pelo público.

Do ponto de vista da sociedade em geral, as mudanças tendem a fortalecer a confiança nas instituições orçamentárias, ao menos no que tange à prevenção de esquemas secretos. A existência de atas, votos de comissão e exigência de maioria das bancadas para validar emendas coletivas pode dar mais legitimidade a essas destinações — elas deixam de ser decididas por um único relator ou por um pequeno grupo, sendo decisões coletivas documentadas. Isso confere um caráter menos personalista ao processo e possivelmente mais alinhado com interesses públicos amplos (especialmente no caso das emendas de comissão, que pela nova redação devem representar interesse nacional ou regional, em vez de apenas demandas locais paroquiais). Também é positiva a preocupação com a eficácia do gasto, ilustrada pelas regras que incentivam a conclusão de obras já iniciadas. Havia críticas antigas de que emendas parlamentares pulverizavam recursos em centenas de obras novas, muitas vezes deixando um rastro de construções inacabadas pelo país. Ao direcionar parte das emendas para concluir projetos pendentes, a resolução busca corrigir essa distorção, beneficiando diretamente a população com a entrega efetiva de serviços ou infraestrutura que antes poderiam empacar.

No entanto, apesar desses avanços, persistem desafios e potenciais efeitos negativos. O primeiro e mais comentado é que, mesmo com a nova norma, a transparência talvez não seja completa em todos os casos. Isso porque o texto permite que os líderes partidários centralizem a indicação das emendas de comissão, o que, na prática, pode ocultar os verdadeiros autores individuais das sugestões. E o efeito pode ser o surgimento da figura da “emenda de líder partidário”, algo não previsto na Constituição, permitindo que os líderes assinem as indicações das emendas de comissão (RP8) em nome de suas bancadas, omitindo os nomes dos parlamentares que efetivamente destinaram os recursos. Assim, corre-se o risco de se trocar um “orçamento secreto” por um “orçamento semi-secreto”, onde agora quem aparece é o líder do partido, mas não se sabe qual deputado ou senador de sua bancada propôs cada projeto financiado. Vale observar que o compromisso firmado com o STF menciona planilhas internas com esses detalhes, mas nada garante que tais informações serão facilmente acessíveis ao público. Se ficarem restritas aos arquivos da comissão ou do SIOP, a transparência ficaria incompleta. Parlamentares de oposição já alertaram que o rito ainda pode ser “não transparente” caso não haja discriminação do autor final da emenda de comissão. Ou seja, a implementação prática dirá se essa lacuna será preenchida ou não. Uma possível solução em discussão é que, além do nome do líder, seja publicada uma lista dos parlamentares apoiadores por trás de cada emenda coletiva — algo que o Congresso prometeu fazer. Se isso falhar, o STF poderá voltar a intervir, já que a Corte deixou claro que o processo só estará plenamente adequado quando cada indicação tiver um responsável identificável.

Outra implicação a considerar é o impacto no equilíbrio de poder Executivo-Legislativo. Desde a introdução das emendas impositivas (individuais em 2015 e de bancadas em 2019), o Congresso ampliou muito sua influência sobre o Orçamento. O mecanismo das emendas de relator levou isso ao ápice, mas sua proibição não reverteu totalmente a tendência, apenas redistribuiu o poder entre os próprios parlamentares. Com as novas regras, pode haver uma leve contenção desse poder difuso em prol de mais coordenação: por exemplo, ao requerer justificativas técnicas e limitar destinações pulverizadas, espera-se que as emendas convirjam mais com prioridades de planejamento (como saúde, obras inacabadas etc.). No entanto, o Legislativo soube preservar boa parte de seus “superpoderes” no orçamento. A nova resolução não reduz o montante das emendas nem elimina a obrigatoriedade de pagamento — pelo contrário, assegura que a maior parte do bolo de recursos que antes era “secreto” continue sendo manejada pelos parlamentares. Portanto, o Executivo ainda terá que negociar politicamente a alocação desses recursos, só que agora sob os holofotes. Isso pode significar um Congresso ainda forte na barganha orçamentária, mas menos propenso a chantagear o governo de forma invisível. Por um lado, a publicidade das emendas pode deixar o Executivo mais à vontade para negar demandas clientelistas absurdas; por outro, os parlamentares podem alegar legitimidade e transparência para continuar exigindo verbas volumosas. Resta saber se, a longo prazo, haverá um reequilíbrio mais profundo. Mas essa é uma discussão mais ampla. No cenário atual, o que se percebe é um aperfeiçoamento incremental: o Legislativo mantém suas prerrogativas de direcionar verbas, porém sob escrutínio maior do STF, dos órgãos de controle (como TCU e CGU) e da opinião pública. Isso, em si, já é um ganho democrático, ao reduzir assimetrias de informação e dificultar arranjos ilícitos.

Do ponto de vista do controle social, as mudanças criam oportunidades, mas também exigirão vigilância constante. Com mais dados disponíveis (atas, sistemas unificados, filtros no Portal da Transparência), será possível que cidadãos comuns e jornalistas investiguem em detalhe a aplicação do dinheiro das emendas. Por exemplo, descobriu-se recentemente que o TCU e a CGU tiveram mais facilidade para auditar os repasses de emendas quando puderam cruzar dados e identificar os autores das indicações. A continuidade desse esforço deve permitir que eventuais irregularidades venham à tona mais rapidamente. No entanto, informação só gera controle efetivo se for utilizada. Haverá o desafio de traduzir os dados brutos em escrutínio efetivo. Uma enorme lista de atas e planilhas, por si só, não impede desvios — é preciso que haja acompanhamento ativo da sociedade civil. Um ponto crítico serão as transferências especiais (emendas Pix): embora o sistema agora identifique qual deputado mandou recursos a qual município, a fiscalização do uso final pela prefeitura ou governo estadual continua complexa. A própria natureza dessas emendas (que caem na conta local sem projeto específico) faz com que a responsabilidade pelo gasto adequado recaia sobre os prefeitos e governadores beneficiados. O governo federal, por meio da AGU e do Ministério da Gestão, sinalizou que vai integrar melhor os sistemas (SIOP, TransfereGov etc.) para acompanhar a execução local e exigir prestações de contas. Prova disso é que, já em 2025, o MPF recomendou ações contra centenas de municípios que não prestaram contas dos recursos recebidos via emenda Pix no ano anterior, mostrando haver consequências para a falta de transparência na ponta final. Ainda assim, impedir completamente mau uso requer capacidade de auditoria descentralizada, e nisso há limites práticos.

Em síntese, as implicações da Resolução 1/2025 podem ser vistas como um passo adiante na institucionalização do processo orçamentário, reforçando a transparência e equilibrando parcialmente o jogo político. Porém, não eliminam todas as fontes de distorção e conflito. A eficácia dessas medidas dependerá de como serão implementadas no dia a dia e se haverá vontade política para fechar as brechas remanescentes (como a identificação dos autores das emendas de comissão). Também será fundamental observar se a maior abertura dos dados conduzirá a mudanças de comportamento — tanto dos parlamentares, ao se sentirem mais responsabilizados publicamente, quanto do Executivo, ao talvez retomar parte da capacidade de planejamento estratégico.

Exemplos concretos

Para ilustrar os problemas do modelo anterior e como as novas regras poderiam impactar situações semelhantes, podemos citar alguns casos recentes divulgados na mídia que evidenciaram a falta de transparência das emendas parlamentares — e imaginar o que mudaria com a Resolução 1/2025 em vigor.

O “Orçamento Secreto” e o escândalo do Tratoraço (2020–2021): Este caso emblemático revelou como a ausência de transparência permitiu graves distorções. Em 2021, descobriu-se que o relator do Orçamento de 2020 havia distribuído cerca de R$ 3 bilhões em emendas a um seleto grupo de congressistas, sem divulgação dos nomes. O resultado: esses parlamentares aplicaram as verbas em projetos do seu interesse, inclusive na compra de tratores e máquinas agrícolas com sobrepreço de até 259%, configurando desperdício de dinheiro público. Além disso, a liberação dessas emendas ocorreu estrategicamente em dezembro de 2020, véspera da eleição para as presidências da Câmara e do Senado, o que sugere que foram usadas para influenciar o voto dos parlamentares — uma espécie de “compra de apoio” mascarada. Se as regras atuais estivessem valendo naquela época, esse esquema dificilmente prosperaria. Primeiramente, cada indicação teria um padrinho identificado, então já constaria em registros públicos que os deputados X e Y direcionaram milhões para tais e tais municípios. Esses parlamentares teriam de assumir publicamente a responsabilidade pelos gastos, arcando com o desgaste de explicar, por exemplo, porque autorizaram pagar por um trator muito acima do preço de mercado. Além disso, as atas das reuniões mostrariam como foi a decisão no Congresso — no caso do orçamento secreto, não havia reunião alguma, era tudo tratado bilateralmente entre o relator e os solicitantes. Com a Resolução 1/2025, seria necessário, por exemplo, que uma comissão temática aprovasse emenda destinando recursos para máquinas agrícolas como política nacional, ou que uma bancada estadual deliberasse sobre isso em ata, o que certamente sofreria escrutínio dos demais membros. Muito possivelmente, um caso como o Tratoraço seria barrado nas instâncias internas (por falta de mérito técnico) ou, se aprovado, seria rapidamente alvo de contestação pública ao se tornar transparente.

Poderíamos citar ainda a questão das “escolas fake” — recursos de emendas de relator alocados para construir escolas que não saíram do papel, levantada em 2021 e 2022 — ou casos de ONGs de fachada que receberam verbas de emendas. Sobre este último, a Controladoria-Geral da União realizou auditorias e encontrou diversas entidades do terceiro setor beneficiadas por emendas sem capacidade ou clareza de uso, o que levou o STF a vetar temporariamente repasses para algumas ONGs até que se comprovasse a regularidade. Com a rastreabilidade atual, ficou mais simples cruzar o Cadastro de Entidades Impedidas (CEPIM) com os destinatários indicados nas emendas e barrar transferências suspeitas. Assim, problemas como repasses para instituições ligadas a parlamentares ou com histórico duvidoso tendem a ser enfrentados com maior rapidez. Os casos reais que vieram à tona nos últimos anos — do tratoraço às ONGs problemáticas — serviram de catalisador para as novas medidas. E cada um deles ilustra um tipo de falha que a Resolução 1/2025 e o plano de transparência associado buscam corrigir: falta de identificação do padrinho, falta de planejamento do gasto, falta de monitoramento do beneficiário.

Com essas ilustrações, percebe-se que as regras não surgiram no vácuo, mas como resposta a distorções concretas. Os exemplos também ajudam a entender onde as mudanças incidirão na prática e em que medida poderão prevenir a repetição dos problemas.

Opinião e conclusão

Após analisar o contexto e o conteúdo do Projeto de Resolução 1/2025, é possível afirmar que ele representa um importante passo na direção de tornar o Orçamento mais transparente e responsável. Do ponto de vista didático, vemos claramente uma evolução: o que antes era chamado de orçamento secreto agora tende a ser um orçamento mais aberto e escrutinável. Acredita-se que a combinação de identificação nominal das emendas, registros em atas públicas e integrações de sistemas de transparência atenderá, em grande medida, às exigências feitas pelo STF e pelos órgãos de controle. Será muito mais difícil, daqui em diante, que verbas públicas sejam distribuídas à sombra, sem que a sociedade saiba quem solicitou, para quem e com qual finalidade. Nesse sentido, a Resolução 1/2025 cumpre o papel de fechar uma página obscura da recente história orçamentária brasileira, virando o jogo a favor da publicidade e do controle social.

Entretanto, seria ingenuidade supor que apenas essa mudança formal das regras resolverá todos os problemas. Um olhar mais opinativo leva a crer que ainda existem desafios na implementação e eventuais brechas que podem limitar o impacto real das medidas. Em primeiro lugar, a efetividade prática das novas diretrizes dependerá do comprometimento dos próprios parlamentares e partidos em segui-las no espírito da lei, e não somente na letra. Por exemplo, se bancadas inteiras concordarem em esconder suas digitais por trás da assinatura de um líder, a transparência fica comprometida — mesmo que tecnicamente a ata exista. Será preciso pressão contínua (do STF, da mídia, da sociedade) para que os detalhes por trás das emendas de comissão sejam de fato divulgados, assegurando o cumprimento integral do acordo. Caso contrário, pode-se voltar à estaca zero em termos de controle público, ainda que sob um verniz de legalidade. Como o próprio ministro Flávio Dino observou ao referendar o acordo, “passos concretos foram dados nesses oito meses, mas [estamos] muito longe do ideal”. Essa declaração sinaliza que o STF vê as mudanças como positivas, porém insuficientes se tomadas isoladamente — há um caminho de aprimoramento a seguir.

Outro ponto de atenção é a capacidade de fiscalização e reação das instituições perante o novo modelo. A experiência mostra que regras inovadoras podem enfrentar resistência ou interpretações divergentes. Por exemplo, a necessidade de atas e quóruns elevados pode, na prática, tornar o processo de aprovar emendas coletivas mais lento e trabalhoso. Isso exigirá mais organização das bancadas e comissões. Se esse processo se mostrar muito burocrático, pode haver tentativas de flexibilizá-lo futuramente — a serem vigiadas para não haver retrocesso na transparência. Além disso, órgãos como a CGU e o TCU precisarão adaptar seus métodos para auditar um volume enorme de emendas individualizadas. Antes, fiscalizar o orçamento secreto era difícil pela falta de dados; agora haverá dados em abundância, mas será um desafio examinar a fundo milhares de pequenas destinações e suas respectivas execuções. O sucesso do novo modelo depende de instituições de controle atuantes e bem aparelhadas. Uma recomendação prática seria investir em ferramentas de tecnologia e inteligência artificial que vasculhem os bancos de dados em busca de anomalias (por exemplo, um mesmo fornecedor recebendo dezenas de emendas de distintos parlamentares, possíveis indícios de coordenação ou fraude). A arquitetura da transparência estará montada, mas precisaremos dar vida a ela através do uso efetivo dos dados para prevenir e corrigir abusos.

Do ponto de vista político, minha avaliação é que a solução encontrada — embora não perfeita — foi um arranjo possível nas correlações de força atuais, e tem o mérito de envolver compromisso dos três Poderes. O Congresso cedeu em parte, concordando em se submeter a controles que antes rejeitava, mas manteve parcelas de influência (como vimos, algumas margens para não explicitar tudo). O Executivo, por sua vez, garantiu o destravamento as emendas, mas terá que conviver com um Legislativo empoderado no orçamento, ainda que agora mais transparente. O STF, ao homologar o acordo, indicou confiança nesse caminho conciliatório, mas continuará certamente de olho. Em última instância, quem julgará se a fórmula é suficiente serão os fatos: se, nos próximos anos, escândalos como o orçamento secreto não mais ocorrerem, e se os recursos das emendas forem cada vez mais rastreáveis e bem aplicados, então poderemos dizer que a iniciativa cumpriu seu propósito. Por outro lado, se novas formas de burla surgirem — seja via “emendas de líder”, seja em âmbito municipal (como prefeitos desviando emendas Pix) — talvez novas intervenções sejam necessárias, sejam legislativas, sejam judiciais.

Em conclusão, considero que o Projeto de Resolução 1/2025 traz sim um aperfeiçoamento relevante e necessário ao processo orçamentário brasileiro. Ele endereça frontalmente as críticas de transparência e cria bases para um controle social mais eficaz do dinheiro público. Não é, por óbvio, a panaceia contra todos os males: transparência não garante boa gestão automaticamente, mas é condição essencial para que a boa gestão seja cobrada e verificada. A solução adotada foi fruto de negociação e tem suas concessões — talvez por isso não elimine por completo as “zonas cinzentas” do orçamento. Ainda assim, é um avanço comparado ao cenário caótico de até pouco tempo atrás. Evitar distorções no uso das emendas parlamentares dependerá agora de como esse novo regramento será observado no dia a dia. Se houver empenho dos parlamentares em respeitar não apenas a letra, mas também o espírito da transparência, e se os cidadãos fizerem uso das informações disponíveis para demandar correções, então teremos dado um salto de qualidade na gestão do Orçamento. Caso contrário, ficará a lição de que nenhuma regra, por melhor que seja, substitui a vigilância democrática contínua. Por ora, porém, prevalece um otimismo cauteloso de que estamos no caminho certo para sepultar de vez o orçamento secreto e inaugurar uma era de orçamento mais aberto, rastreável e participativo, conciliando o poder de emenda do Legislativo com os princípios republicanos que regem a administração pública.

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