Por Alice Maciel, da Agência Pública https://apublica.org/
Um projeto de lei (PL) que traz retrocessos para a segurança pública do país defendido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) avança no Senado Federal com apoio do governo Lula. A proposta, que institui a lei orgânica unificada para as polícias militares e corpo de bombeiros, contempla bandeiras bolsonaristas que foram combatidas pelo PT quando era oposição, mas que agora acena pela aprovação do texto.
O PL 3.045/2022 abre brecha para acabar com as Secretarias de Segurança nos estados nos moldes do que ocorreu no Rio de Janeiro durante o governo de Wilson Witzel; dá poder de fiscalização ambiental aos policiais militares, conforme proposto por Jair Bolsonaro quando ainda era deputado federal; e limita a entrada de mulheres na corporação ao determinar para elas um teto de vagas.
Esses são alguns dos pontos considerados graves no projeto de lei pelas organizações da sociedade civil de direitos humanos e segurança pública, que se mobilizaram na semana passada para pressionar o governo a abrir um debate sobre o tema, diante da possibilidade de a proposta ser aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado sem discussão. Na quarta-feira (13/9), uma carta cobrando um posicionamento do governo federal foi encaminhada ao presidente Lula (PT) e entregue ao secretário de Acesso à Justiça, Marivaldo Pereira, e à assessora especial do ministro da Justiça, Sheila de Carvalho.
“Além de dar o carimbo de um governo popular a uma legislação autoritária, o projeto atual supera os retrocessos anteriores”, diz o documento, que conta com mais de 500 assinaturas.“O PL aprofunda os poderes das polícias militares, incorpora a legislação militarista de 1967/69 e amplia a incidência das Forças Armadas”, acrescentam as entidades na carta.
Nela, as organizações pedem que o relator da proposta na CCJ do Senado, o líder da bancada do PT na Casa, Fabiano Contarato (PT-ES), convoque uma audiência pública. O parlamentar recebeu em seu gabinete representantes dos movimentos e se comprometeu a realizar a reunião, segundo o cofundador da Uneafro Brasil e liderança da Coalizão Negra por Direitos Douglas Belchior, que participou do encontro.
“O Brasil inteiro se manifestou contra a onda de violências da polícia em diversos estados. Ao contrário desse projeto, precisamos desmilitarizar, humanizar as polícias, efetivar formas de controle social sobre a sua atuação, frear a sanha assassina das polícias, e não dar liberdade a elas para que continuem matando pretos todos os dias”, destaca Belchior em postagem nas redes sociais.
A matéria foi aprovada a toque de caixa na Câmara dos Deputados em votação simbólica no dia 14 de dezembro de 2022 – penúltima semana de trabalho do Congresso daquele ano –, com o apoio de partidos que à época eram oposição, como PT, Psol e Rede. No Senado, o texto recebeu aval da Comissão de Segurança Pública (CSP) no dia 11 de julho deste ano, sob a relatoria, também, do senador Fabiano Contarato.
Apesar de ter como uma das pautas de seu mandato a humanização das forças de segurança, Contarato, delegado licenciado da Polícia Civil do Espírito Santo, encaminhou pela aprovação do texto, que em 48 páginas cita “direitos humanos” apenas três vezes.
Em entrevista à Agência Pública, o parlamentar disse que o PL recebeu alguns ajustes com emendas de redação durante a tramitação na CSP. “Eu acho que o texto, do jeito que está, está bom para ser votado”, afirma. Ele afirmou que não há previsão para que a proposta entre na pauta da CCJ e que irá fazer uma audiência pública “o mais rápido possível”.
Conforme representantes de organizações da sociedade civil ouvidos pela reportagem, no entanto, o senador já se manifestou contrário a mudanças estruturais no texto para evitar que ele retorne à Câmara. “O Contarato está inflexível”, frisa o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Renato Sérgio de Lima.
A partir de conversas com fontes do governo, a reportagem apurou que Lula não estaria disposto a barrar a tramitação da proposta, como um aceno aos militares, que em sua maioria integram a base de apoio de Bolsonaro. Por esse motivo, a ordem até então era que o PL tramitasse no Senado “sem alarde”. Mas a expectativa das instituições que lutam para modificar o texto é que, com a pressão social, alguns pontos sejam revistos.
Projeto coloca secretarias de Segurança em risco e limita participação de mulheres
Um dos trechos do PL 3.045/2022 considerado mais grave pelo FBSP é o que abre brecha para acabar com as secretarias de Segurança Pública nos estados, uma vez que determina que a administração da instituição seja feita pelo comandante-geral da Polícia Militar.
“Os comandantes-gerais das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios […] serão responsáveis, no âmbito da administração direta, perante os governadores das respectivas unidades federativas e Territórios, pela administração e emprego da instituição”, diz o artigo 29 do texto. “Eles estão acabando com os secretários de Segurança”, destaca Lima.
Ele lembra que esse modelo foi adotado no Rio de Janeiro. O estado tem a polícia que mais mata e mais morre, de acordo com relatório divulgado pela Rede de Observatório da Segurança em outubro do ano passado, que monitora eventos violentos em outros seis estados.
Em 2019, o então governador Wilson Witzel extinguiu a Secretaria de Segurança Pública e a dividiu em duas: Secretaria das Polícias Militares e Secretaria da Polícia Civil. “Como é que você pensa em um Sistema Único de Segurança Pública [Susp], se você tem estruturas de governança diferentes? O artigo 29 está mudando completamente a governança”, afirma o diretor-presidente do FBSP.
Outro ponto do projeto considerado problemático pelas organizações é o que limita a entrada de mulheres na corporação. O texto diz que 20% das vagas nos concursos públicos serão preenchidas por candidatas do sexo feminino e que apenas na área da saúde as mulheres “além do percentual mínimo, concorrem à totalidade das vagas”. “A redação transforma as vagas em teto, e não piso”, ressalta Lima.
Documento elaborado pelo FBSP sobre o PL mostra que esse mecanismo vem sendo utilizado há décadas por polícias militares de vários estados para impedir a participação das mulheres nas corporações e cita a pesquisa Perfil das Instituições Policiais, realizada pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública, que aponta que o Brasil possuía, em 2021, efetivo estimado em 394.882 policiais militares, dos quais 88% eram do sexo masculino e 12% do sexo feminino.
Esse ponto do projeto também foi destacado na nota técnica encaminhada ao gabinete do senador Fabiano Contarato pelo Instituto Sou da Paz, que acompanha o debate sobre a Lei Orgânica dos Militares desde 2021. A organização questiona ainda o trecho da proposta que estabelece a exigência de bacharelado ou curso de formação para que haja o ingresso em quadros de oficiais das corporações.
“A nossa análise é de que não cabe a exigência de bacharelado em direito, pois a formação policial é muito mais ampla e complexa do que o curso de direito pode dar conta, e essa insistência em seguir no bacharelado apenas reforça uma cultura excessivamente jurídica no campo da segurança pública, que dificulta que o campo policial seja construído de forma autônoma e com suas próprias especificidades”, destaca o Sou da Paz.
Incrementos à norma atual
A diretora-executiva da instituição, Carolina Ricardo, avalia que, apesar de o texto ainda precisar de modificações, traz “incrementos positivos” em relação ao decreto-lei que regulamenta a PM atualmente. Ela argumenta, por exemplo, que a proposta padroniza uma série de garantias mínimas para os policiais, como, por exemplo, equipamentos de proteção individual (EPIs) para todo efetivo. “Parece uma coisa básica, mas tem muitos estados que não têm, muitas PMs são muito precarizadas e muito fragilizadas”, ressalta.
Outro ponto que ela avalia como positivo na proposta estabelece que o comandante-geral deverá seguir critérios objetivos para distribuir o efetivo policial. “Esse é um ponto bem relevante porque a gente sabe que em muitos estados o efetivo policial é distribuído de forma política e ter critérios objetivos é importante para blindar as polícias de politização”, explica Carolina Ricardo.
Ela destaca ainda que foi incluída no PL uma sugestão do Sou da Paz que diz respeito à transparência. Segundo a representante do instituto, o texto atual estabelece a necessidade de divulgação pública de relatórios anuais pelas PMs com dados de produtividade, letalidade e vitimização policial.
“O PL é, de fato, uma lei que não muda coisas estruturantes, não desmilitariza, mantém a subordinação das PMs ao Exército, separa praças e oficiais. Mas, como a gente acompanhou a discussão durante anos, a gente avalia que era muito difícil fazer uma proposta revolucionária”, ressalta Carolina Ricardo referindo-se ao perfil conservador do Congresso Nacional. “Por outro lado, também entendo que é uma perda de oportunidade no campo progressista de avançar nesse debate”, pondera.
Proposta de lei orgânica da PM contempla projeto de Bolsonaro
Um dos trechos da proposta de lei orgânica das polícias e bombeiros militares que tramita no Senado tem origem em um projeto de lei apresentado por Jair Bolsonaro em 2014 – quando ele ainda era deputado federal – que inclui as PMs no Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), como órgão de fiscalização ambiental.
Isso significa que as corporações, assim como Ibama e ICMBio, poderão lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para esses crimes. O PL de Bolsonaro foi rejeitado na Comissão de Meio Ambiente em 2014, em que o relator foi o deputado Leonardo Monteiro, do PT de Minas.
O mesmo texto foi apresentado na legislatura passada, no PL 6.289/2019, de autoria do Coronel Tadeu (PSL-SP) e incluído na matéria sobre a Lei Orgânica das PMs pelo Capitão Augusto (PL-SP). Líder da bancada da bala na legislatura passada, o parlamentar é o autor do substitutivo da proposta em discussão.
O projeto que estabelece as regras gerais para as polícias e corpo de bombeiros militares foi apresentado originalmente em 2001 pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, mas foi o substitutivo do Capitão Augusto que passou pelo crivo dos deputados federais no ano passado, após algumas mudanças.
Durante a tramitação na Câmara, foi retirada da matéria, por exemplo, a exigência de que governadores precisariam escolher o comandante da PM por meio de uma lista tríplice formada pelos próprios oficiais e com previsão de mandato de dois anos. Este ano, no entanto, Sargento Portugal (Pode-RJ) apresentou um novo projeto resgatando a ideia.
Discussão sobre lei orgânica está fora do debate nas redes
De acordo com pesquisa realizada pelo Datafolha publicada no sábado (16/9), a segurança, ao lado da saúde, é a área de maior insatisfação entre os brasileiros. Conforme o levantamento, 71% dos entrevistados se dizem inseguros.
Apesar disso, o PL da lei orgânica das polícias militares, tema de relevância para esse debate, está fora da pauta de discussão, ao menos nas redes sociais. É o que mostra um estudo da Democracia em Xeque. A organização fez, durante todo o mês de agosto, uma busca em mais de 2 mil perfis no Instagram e Facebook – nos segmentos extrema direita, esquerda, centro e imprensa – e não localizou nenhuma publicação citando a lei orgânica da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros.
Além disso, foram encontradas em grupos públicos monitorados no WhatsApp poucas mensagens, que circularam em julho, com menção à aprovação da lei orgânica dos policiais militares e bombeiros na CSP do Senado e seu envio para análise na CCJ.
Outra pesquisa da Democracia em Xeque em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que o tema também não está disseminado na categoria. Entre os 248 policiais militares ou profissionais dos corpos de bombeiros militares consultados, 96 (38,7%) disseram desconhecer a tramitação da proposta.
Questionados sobre o grau de concordância com a frase “O atual projeto vai resolver os problemas dos policiais militares e profissionais do corpo de bombeiros militares”, 30,9% concordaram ou concordaram totalmente; 42,8% discordaram ou discordaram totalmente, e 26,3% dos profissionais que responderam à pesquisa dizem não concordar nem discordar da frase (40 profissionais).
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