O padre Júlio Lancellotti foi ameaçado por uma CPI da Câmara de Vereadores de São Paulo que investigaria supostas irregularidades de sua primorosa e exemplar atuação junto aos moradores de rua de São Paulo.
A reação foi tão grande que a referida CPI já deve nascer natimorta. Bom que isso tenha acontecido, mas não elimina a nossa necessidade de refletir sobre o problema. Afinal, o que está por trás de tamanha canalhice e perseguição?
Quase sempre existe um interesse material e palpável, e este caso não é uma exceção. Como o próprio Padre Júlio denunciou recentemente em entrevista ao ICL notícias, a especulação imobiliária, que manda na política de São Paulo, e o seu interesse higienista de “limpar” a cidade dos indesejáveis aparece como principal interessado. A classe média branca quer apartamentos e prédios que possam dar a ilusão de se estar em Milão ou em outra grande cidade europeia.
Em grande parte, a Polícia Militar existe precisamente para garantir essa ilusão, recolhendo pobres de paradas de ônibus ilegal e indiscriminadamente, como tive oportunidade de testemunhar várias vezes como morador da cidade.
No entanto, jamais existe um interesse material que não seja acompanhado de uma ideia – e uma visão de mundo — para torná-lo aceitável e justificável.
A ideia do ódio ao pobre revive o arcaico e jamais cessado ódio ao antigo escravo. Um país que nunca se autocriticou está condenado a repetir seu passado. E esse ódio ao pobre guia como um fio condutor invisível a política e as relações entre as classes no Brasil. Senão, vejamos.
Já é, hoje em dia, óbvio para muitos que a classe média branca e a elite desprezam e odeiam o povinho pobre, mestiço e negro que exploram e humilham todos os dias. Mas o ódio ao pobre e ao negro tem uma repercussão muito maior do que essa.
Ela, na verdade, cinde ao meio as próprias classes populares. É isso que explica que figuras horrorosas como Ricardo Nunes ou Tarcísio de Freitas sejam eleitas pelo voto popular. A classe média e a elite são muito importantes pelo domínio do dinheiro e da esfera pública, mas são classes que, de tão pequenas, não elegem ninguém em uma eleição majoritária.
As duas juntas não somam 20% da população brasileira.
Nesse sentido, 80% dos brasileiros são pobres, metade perfaz os pobres remediados, os que ganham entre 2 e 5 salários mínimos, e os 40% de baixo são os excluídos e marginalizados em medida variável, que ganham menos de 2 salários mínimos. O público potencial do Padre Júlio. Os que tendem a ser os mais higienistas e apoiadores de gente como Nunes e Tarcísio são precisamente estes pobres remediados acima dos marginalizados e abaixo da classe média real.
A dominação política de uma pequena elite que saqueia seu próprio povo só é possível pela cisão e divisão das classes populares em duas partes que se odeiam. Nenhuma divisão social entre nós é mais importante do que aquela que existe entre o pobre “honesto” e o pobre delinquente.
O pobre honesto é aquele que assume como seus os valores que os ricos construíram para oprimi-lo. O pobre delinquente é a vítima de um sistema social injusto que o culpa pelo próprio fracasso construído socialmente de diversas maneiras. A “delinquência” pode ser vender uma trouxinha de maconha na esquina, pode ser o gay ou LGBT, o negro ou o nordestino, ou pode ser simplesmente a mulher, e assim por diante, de acordo com a vontade do freguês.
O decisivo é que o pobre remediado, o segmento no qual Bolsonaro, não por acaso, teve maior número de votos, se sinta “superior” moralmente a alguém. Como um oprimido que não compreende a própria opressão e falta de oportunidades, e desconhece o que causa seu fracasso social relativo, o pobre remediado pode ser facilmente manipulado por um moralismo que, no fundo, equivale a moralização do racismo de classe e de raça da pior espécie.
Quem defende a “limpeza das ruas” e a morte indiscriminada de pobres e negros é, no fundo, um racista que procura moralizar e maquiar o seu racismo com as cores reluzentes da pretensa defesa da moralidade pública.
São precisamente os pobres remediados, muitos deles evangélicos, que são o suporte social e popular a este tipo de política do linchamento e do assassinato. Eles não são assim porque são “religiosos”. Ao contrário, a própria procura por uma religiosidade que vive do moralismo conservador e, no fundo, elitista, denuncia a necessidade anterior de reconhecimento social mínimo, nem que seja às custas de quem ainda é mais vulnerável do que ele.
Parafraseando Paulo Freire, o oprimido que não percebe sua opressão se torna ele próprio um opressor.
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