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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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Vale Tudo ou Tudo o que nóis tem é nóis?

Emicida e Fióti em tempos de Maria de Fátima
10/04/2025 | 05h00
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Não deixa de ser interessante todo o drama Emicida — Fióti ter eclodido no exato momento em que o Brasil está se encantando com o remake de uma novela que foi ao ar há 37 anos, mas parece que foi escrita ontem. Em 1988, um era um bebê e outro nem nascido era.

Para além dos furos jornalísticos mostrando a briga judicial, ninguém estava lá. A notícia fala em dinheiro alto, em retiradas, em quebra de confiança. Nem os fãs, nem a imprensa, nem os colegas artistas, executivos, advogados… ninguém estava lá. Apenas irmãos que foram criados juntos — somente eles — compartilham memórias, conquistas, fracassos, dores, amores.

O que está em jogo, obviamente, são relações trabalhistas, empresariais e monetárias, mas principalmente vidas, laços familiares, de amizade, parceria artística fundadora de um projeto pioneiro, saúde emocional, psicológica e a mente criativa de duas pessoas geniais. Talvez tudo isso valha bem mais que seis milhões.

A novela ‘Vale Tudo’ é um folhetim questionador de temas que podem ser resumidos em duas palavras: ética e honestidade. Dois conceitos flutuantes ao sabor das conveniências, em um país que ao longo destas quase quatro décadas assistiu à ascensão de uma nova classe média; cotas universitárias; o ressurgimento da extrema direita ávida por uma espécie de retorno ao século 18; a implementação, crescimento e solidificação das redes sociais e todo o seu universo terrível e maravilhoso recheado de influencers, a nova atividade vista por milhões de pessoas como a chance de visibilidade, relevância, dinheiro rápido e fácil.

E a internet ferve ávida pelos capítulos não da nova novela das 21 horas, mas a que tem como cenário o rap nacional e o mundo das altas cifras do showbiz.

Vamos combinar que brigas e rupturas no mundo dos negócios — ainda que entre irmãos, aliás, principalmente quando envolve família — são mais do que comuns. Desde sempre isso motiva tramas e mais tramas de filmes, novelas, livros… então, por qual motivo tem tanta gente sentindo especialmente o desentendimento entre os filhos da dona Jacira?

Neste miolo de tempo entre a estreia da novela original estrelada pela vilã Maria de Fátima e sua mãe Raquel até a vida adulta e exitosa dos irmãos criados na zona norte de São Paulo, o mundo viveu uma pandemia e foi no auge deste período, um dos mais nefastos do século, que o projeto multiplataforma ‘Amarelo’ — álbum, documentário, filme, vídeos, podcasts, shows, etc. — lançado em outubro de 2019, aqueceu corações e encheu de orgulho e alegria uma quantidade gigante de pessoas que estavam à beira do desencanto ou mergulhadas totalmente nele.

emicida amarelo netflix

(Imagem: divulgação)

Está no site do artista Emicida sobre o projeto ‘Amarelo’: “(…) Trocando em miúdos: com AmarElo Prisma, Emicida pretende promover — por meio da empatia — uma mudança de comportamento que permita um respeito à pluralidade do Brasil. Para isso, ele parte de narrativas pessoais (a dele e a de múltiplos e diversos entrevistados) para chegar em soluções coletivas”.

Coletividade é uma palavra fortíssima quando se fala em “pluralidade do Brasil” e o sentimento de construção coletiva é o que surge quando, por exemplo, se recorre à imagem de membros fundadores de grupos como o Movimento Negro Unificado (MNU). E eles estão lá, no documentário, no show. Não apenas eles, mas muitas pessoas que construíram vidas e carreiras neste caminho. Talvez daí venha a trava amarga que muita gente sentiu com a disputa e um certo gosto velho da “força da grana que ergue e destrói coisas belas”.

A letra da música carro chefe de ‘Amarelo’ diz: “Eu sonho mais alto que drones. Combustível do meu tipo? A fome”. No fim, o episódio escancara as armadilhas que podem esconder a fama e a falta de preparo para lidar com a ascensão financeira. Duas coisas que pegam pelo pé todo mundo, mas principalmente quem teve origem nas periferias e foi movido pelo “combustível” acima. Nas palavras do próprio Fióti: O que eu percebi foi que esse lugar da ascensão econômica, a gente não foi preparado para os desafios que traria no que a gente deveria mudar individualmente na nossa vida”.

Apesar do momento turbulento de desequilíbrio entre os anseios individuais e coletivos e da polêmica que ganhou as redes, o que já foi feito de poderoso pela dupla não muda e os fãs verdadeiros torcem para que a fala de Emicida em ‘Amarelo’ seja verdadeira. “O abutre ronda, ansioso pela queda (sem sorte). Findo mágoa, mano, sou mais que essa merda (bem mais)”.

Por “essa merda” podemos nós, os que não têm seis milhões em jogo, pensar que seja a mesma crise que norteia a trama de “Vale Tudo”?

O novo capítulo da vida real é que há uma trégua em curso. Tomara que lá, onde ninguém está e apenas eles podem ver, Emicida consiga ser Leandro e Fióti, o Evandro.

De pé no chão, homem comum / Se a benção vem a mim, reparto
Invado cela, sala, quarto/ Rodei o globo, hoje tô certo/ De que todo mundo é um… E tudo, tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis”.

 

Vale Tudo? Não, Maria de Fátima.

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