Existe um verbo que caiu no esquecimento e praticamente só quem tem mais de 50 usa de vez em quando: acochambrar. Segundo o dicionário Aulete, significa fazer algo de maneira escusa ou forjar fraudulentamente. No popular, armar uma gambiarra para fingir que cumpriu a tarefa.
É uma boa definição para o que estamos assistindo no Brasil, como desdobramento das invasões das sedes dos Poderes da República em 8 de janeiro de 2023. Especialmente em relação aos militares que, à vista de todos, tanto fizeram para desestabilizar a democracia no país.
Já passaram pelo xilindró, ou ainda estão lá por causa do quebra-quebra, mais de 1.300 golpistas. Além dos executores, uns poucos financiadores foram presos – só peixe miúdo. Apesar disso, a Polícia Federal e o ministro Alexandre de Moraes repetem que aqueles que despejaram grana na tentativa de golpe terão sua punição – houve, inclusive, operação da PF na manhã de ontem com esse objetivo.
O que não se vê mesmo é sinal à vista ou fora de vista de punição aos militares de alta patente que colaboraram com a escalada antidemocrática.
Não é difícil identificá-los. Como dito antes, foi pública a ofensiva de tom autoritário, que misturou tentativa de intimidação ao Judiciário, campanha de descrédito do processo eleitoral e resistência à vontade dos eleitores expressa nas urnas.
O único oficial a ser preso foi o tenente-coronel Mauro Cid, mas não pelo golpismo que compartilhou com seu chefe, Jair Bolsonaro, e sim por crimes comuns que costumam ser atribuídos a quadrilheiros e falsificadores de quinta categoria. Já está solto.
Havia golpistas fardados em todos os níveis da escalada. Generais eram conselheiros de Bolsonaro e também responsáveis por pastas que tiveram papel preponderante nos ataques à democracia. Na outra ponta, na caserna, estavam os oficiais que foram tão permissivos com os bolsonaristas acampados à frente dos quartéis e também aqueles que emitiam notas críticas ao desempenho do Judiciário.
Os golpistas militares se mantiveram no domínio da situação mesmo depois da posse de Lula. Basta ver como continuam a saltitar no noticiário as notas de generais que falam em off por meio de jornalistas, seus porta-vozes informais. Dessa forma, expressam o que lhes agrada ou desagrada a cada gesto do atual governo.
O ministro da Defesa, José Múcio, faz de tudo para não melindrar os comandantes. Múcio é muito criticado, mas não age por conta própria. Sua conduta foi acertada com o presidente, que também não quer contrariar os militares. Múcio faz o que Lula quer. E Lula não faz o que os militares não quiserem.
Algo indesejado pelos chefões da caserna é ser submetido ao julgamento dos civis. As Forças Armadas têm sua própria Justiça e, embora uma tentativa de golpe de Estado esteja longe de ser assunto corporativo, é nessa instância que querem ver julgados os seus conspiradores.
Na sexta-feira (5), o Exército anunciou o veredito sobre dois fardados que foram acusados de golpismo. As sindicâncias internas não apontaram a prática de crime, mas de mera infrações disciplinares, coisa para punição leve. É o que quase sempre acontece.
Os nomes dos dois investigados não foram divulgados. Mas há muitos militares identificados como sócios do golpismo. A CPMI do Congresso apontou onze deles: tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, general Walter Souza Braga Netto, general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, general Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, almirante Almir Garnier Santos, general Marco Antônio Freire Gomes, general da reserva Ridauto Lúcio Fernandes, coronel Antônio Elcio Franco Filho, sargento Luís Marcos dos Reis e coronel Jean Lawand Júnior.
Pelo que se viu nos últimos meses, são mínimas as chances de que esse indiciamento por crime tão grave se transforme em punição efetiva, repetindo o histórico secular do Brasil em relação à caserna.
Nos discursos feitos ontem no evento “Democracia Inabalada”, em Brasília, tanto pelo presidente Lula quanto pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, ouviu-se a promessa de que não haverá impunidade para os golpistas. Ao fim de cada afirmação dessas, parecia ecoar no salão do evento a pergunta incômoda: “Isso vale para os militares?”
Infelizmente, tudo leva a crer que não.
Os fardados que foram mentores de Bolsonaro, atacaram e atacam o Poder Judiciário e planejaram a tentativa de um golpe de Estado vão voltar ilesos às suas rotinas, até identificar uma nova oportunidade para conspirar contra o Brasil.
E a rotina brasileira seguirá assim, acochambrada, em nome da “pacificação” geral: os militares fingem que se submetem às leis e a gente finge que acredita.
Deixe um comentário