Finalmente chegou aquela época do ano em que, há 24 anos, as notícias, as redes sociais e milhões de cabeças no país inteiro estão com todas as atenções voltadas para pessoas que se confinam em cenários de estúdios de televisão. O BBB junta pessoas de perfis e origens diversas em um espaço onde tudo parece superlativo.
É muito dinheiro envolvido, muita comida e bebida envolvida (a cesta básica do grupo que recebe menos, tem quantidades consideradas banquetes natalinos pela maioria da população), muita festa, muita fofoca, muito choro, muita ofensa, muito abraço… muito.
Tudo parece permitido e em grandes doses, mas para além dos contatos com o mundo externo, algumas (apenas algumas) questões que configuram crime e agressões físicas, só uma coisa é terminantemente proibida na casa mais vigiada do Brasil: a literatura. Serão, para quem for até os últimos momentos dentro da casa ou a acompanha fora dela, 100 dias sem referências a outra leitura que não seja a do jogo. Não foi sempre assim, embora a proibição não seja de agora.
É sempre complicado falar deste programa porque ele desperta ódios e paixões na mesma medida e quase no grau do fanatismo. Se você chegou até aqui neste texto, já deve poder ler uma série de críticas de quem nem aqui chegou, só pela suposição de alguma crítica, elogio… o que for. Este fato gera uma preguiça em comentar que não tem a ver com o Big Brother em si, mas às reações de quem — de um lado e de outro — se sente afetado por ele.
IRONIA
No entanto, a questão aqui não é apontar comportamentos, mas a proibição de que os confinados levem livros na bagagem. Ela é especialmente irônica em um programa cujo nome e, mais que o nome, a ideia central saiu (vejam só!) de um livro. A obra clássica “1984”, uma distopia escrita pelo britânico George Orwell, em 1949, trouxe ao mundo o “Grande Irmão” (Big Brother), um ente político que tudo vê. Ele vigia constantemente as pessoas e simboliza a vigilância constante de um estado totalitário e que persegue ferozmente o quê? O pensamento e a reflexão.
Quando a empresa holandesa Endemol criou a atração e a batizou com o nome do personagem de Owell, sabia que o “BB” seria um sucesso, mas talvez não tenha medido a extensão que alcançaria quando fosse acrescentado o “B” de Brasil à sigla. Aqui, historicamente, a colonização trabalhou como outro personagem do 1984, Winston Smith, que trabalha apagando fatos, registros e reescrevendo a história.
Minha experiência mais de perto com mecanismos internos do programa que mais movimenta o país foi com a edição de 2019, quando participou o ator e diretor Rodrigo França. Na época, ainda não havia a proibição e ele levou meu primeiro romance, “Água de barrela”. Foi uma surpresa bonita vê-lo lá dentro, para o Brasil inteiro, lendo um livro meu, mas isso me deu a dimensão real do que é o BBB, pois um dia acordei com uma enxurrada de mensagens com imagens do Rodrigo lendo o livro no sofá da casa.
Encerrado o programa, ele me deu a sua impressão: “Ler me fazia acalmar, me fazia parar para respirar e me parece que isto era um incômodo para a dinâmica. Quando eu sentia que estava na beira de explodir, pegava o livro. Até que finalmente tiraram de mim e faltavam apenas 10 páginas! Passei o resto da minha participação pensando em como a história ia terminar”, me disse ele entre risos, mas o episódio nos fez pensar demais em como a leitura pode ser um ato que leva quem lê a um outro estado de ânimo.
PROVAS
Se existe gente muito boa em resistência física, existem pessoas muito boas em argumentação. Imaginem uma prova que envolvesse a leitura de pequenos, mas bombásticos textos de autoras e autores renomados durante o dia, para uma discussão ao vivo? Ou grupos que tivessem que defender ou criticar determinada ideia a partir de um trecho de livro? Seria eletrizante, renderia pano pra muita manga e seria revelador dos participantes em muitos aspectos.
Leitura é tanta coisa, existem tantas formas divertidas e interessantes de fomentá-la. Seria tão importante o incentivo neste ambiente para um país que sofre com evasão escolar, com questões no aprendizado, onde não se lê e com isso um número gigante de pessoas não consegue atingir outros degraus de escolaridade, acesso à cultura e empregabilidade… mas, infelizmente, tudo aqui é suposição, é futuro do pretérito porque nem na decoração os livros aparecem.
UM INCÔMODO
A cultura, e nela a literatura, é das primeiras coisas atacadas em todo regime antidemocrático por motivos óbvios. Livros podem incomodar muito. Demais! Vai que um autor resolve escrever uma distopia que questiona e fere de forma tão competente e fascinante o controle, a manipulação e o apagamento da história? Vai que alguém cria um “olho julgador e que tudo vê”? Vai que alguém cria um personagem chamado ‘Big Brother’?
Outra ironia no veto do BBB aos livros é que o autor do “1984” era antenado nas injustiças sociais e um crítico mordaz à tirania e à censura. Um dos maiores grupos de comunicação do mundo, no capitalismo, que tem entre suas empresas uma editora e que proíbe livros em um de seus programas é o suprassumo do deboche.
É sempre bem mais fácil falar em democracia do que praticá-la. Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudônimo George Orwell, desde a eternidade, deve estar assistindo embasbacado e impotente à negação do que ele fazia por um personagem que ele mesmo criou e à (por ele inusitada) transformação da sua ficção em realidade.
Uma sugestão: entre um paredão e outro, dê aquela espiadinha em livros bacanas. Vai que curte?
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