Por Chico Alves
Causou surpresa o resultado do novo Índice de Percepção de Corrupção (IPC), divulgado anualmente pela ONG Transparência Internacional, em que o Brasil caiu dez posições. Pelo levantamento, no ano de 2023 o país ficou bem mais vulnerável aos corruptos, apesar de o novo governo ter se esforçado para recuperar instituições que foram aparelhadas na gestão anterior.
O que explica que nos dois últimos anos do governo de Jair Bolsonaro o índice tenha se mantido estável, mesmo diante da criação do orçamento secreto, da inatividade da Procuradoria-Geral da República, da perseguição do Ministério da Justiça a adversários políticos e do aparelhamento da Abin (entre outras aberrações)? Parece difícil entender que justamente no primeiro ano de Lula, em que funções republicanas de várias instituições foram retomadas, o ranking tenha registrado piora tão significativa.
Para analisar o resultado do levantamento e o próprio trabalho da Transparência Internacional, o portal ICL Notícias procurou o cientista social Fábio Sá e Silva, pesquisador e professor da Universidade de Oklahoma, que questiona duramente tanto um quanto outro.
Sobre os parâmetros do tal índice, Sá e Silva tem várias críticas, a começar pela falta de clareza. “Quem são as pessoas em quem a Transparência Internacional se apoia, com cujas percepções está preocupada? São ‘especialistas’ e ‘empresários’ que ninguém sabe quem é, apenas as fontes deles”, ataca.
Quanto à ONG, o pesquisador também não poupa críticas e diz que a entidade faz parte da “indústria da corrupção”, feita para que as pessoas se escandalizem com o cenário brasileiro. “Isso permite levantar doações que, no limite, pagam os salários dos dirigentes e do staff”, explica.
A seguir, a íntegra da entrevista:
Como se explica o resultado do ranking sobre percepção da corrupção, divulgado pela TI, em que o Brasil caiu dez posições em 2023, após ter-se mantido estável nos dois últimos anos do governo Bolsonaro, que tanto aparelhou as instituições?
Esse comportamento do índice aponta para os vieses que podem existir e que há muito tempo são levantados em relação a esse indicador. Trata-se de um índice de percepção, ou seja, que reflete um sentimento das pessoas sobre se há ou não corrupção.
Sabe-se, por exemplo, que quando há mais operações contra corrupção, isso faz com que as pessoas prestem mais atenção ao tema e, com isso, podem dizer que há mais corrupção quando, na verdade, tudo o que está ocorrendo é que a corrupção está sendo investigada.
Esse é apenas um dos problemas. Outro é: quem são as pessoas em quem a Transparência Internacional se apoia, com cujas percepções está preocupada? São “especialistas” e “empresários” que ninguém sabe quem é, apenas as fontes deles.
Além de se tratar de uma elite, será que esses “especialistas” e “empresários” estão distribuídos igualmente em todo o espectro político? Ou podem estar mais à direita ou até mesmo à extrema-direita? São esses problemas que parecem emergir quando vemos essa inconsistência que você bem registrou.
Isso quer dizer que os métodos da Transparência Internacional não são transparentes?
Mais até do que um problema de transparência, metodologicamente há sérios e conhecidos problemas de viés que tornam o índice muito precário. Nas ciências sociais a gente diz que algum dado é melhor que nenhum dado. Mas precisamos saber o que o dado diz e o que não diz, e parte disso tem a ver com a forma como o dado é produzido.
Veja que pode haver até um problema na comparabilidade a que o índice da TI se propõe. Você pega a percepção (repito, trata-se de percepção) de empresários e especialistas no Brasil. Mas empresários e especialistas no Brasil são iguais os dos países nórdicos? Ou essas populações podem ter composição e hábitos informacionais totalmente diferentes, que resultam em percepções diferentes sobre corrupção? Isso tudo tem que ser levando em conta quando a gente se depara com um índice como esse.
O pior é que tudo isso é sabido há mais de décadas. A própria TI, nos anos 2000–2010, resolveu criar um outro índice, que não era de percepção da corrupção, mas de corrupção em si. Eles perguntavam a empresários se haviam pago propina. Nesse índice, o Brasil estava próximo, por exemplo, dos Estados Unidos. Mas por algum motivo, a imprensa e a opinião pública no Brasil seguem dando corda pra esse índice de percepção.
Acredita que há um componente de falso moralismo nesse discurso anticorrupção?
Lá pelos idos de 2010, um estudioso de corrupção chamado Steven Sampson escreveu sobre o que ele chamou de indústria anticorrupção, ou seja, um complexo de organizações e profissionais que fez do combate à corrupção não apenas uma causa, mas um meio de vida.
A TI faz parte dessa indústria e interessa, pra ela, que as pessoas se escandalizem com a corrupção no Brasil. Isso permite levantar doações que, no limite, pagam os salários dos dirigentes e do staff. Não estou dizendo com isso que o Brasil não tenha problemas de corrupção, muito pelo contrário. Mas há diferentes formas de entrar nesse debate. A divulgação desse índice me parece muito mais voltada a fazer barulho do que a contribuir com melhorias.
Qual o papel da imprensa nessa encenação?
A imprensa durante muito tempo vibrou nessa mesma frequência de escandalizar, sem qualificar a discussão sobre as possíveis causas e respostas para a corrupção. E não é de hoje que vem isso; vale lembrar Carlos Lacerda. Para isso, a divulgação acrítica do índice era sem dúvida muito conveniente. E jogava água no moinho da Lava Jato, com quem, aliás, a TI trabalhou bem de perto, que se vendia como vetor de moralização da vida política — até que fosse descoberta como imoral.
Em suma, a imprensa errou muito e, se não faz publicamente uma autocrítica, espero que ao menos nas redações tenha se dado conta disso e esteja virando a chave.
Em outros países, qual a importância que se dá a esse ranking de percepção da corrupção da Transparência Internacional?
Posso falar sobre os Estados Unidos, onde moro. Ninguém dá muita bola. Na academia, os dados têm algum uso, mas, como eu disse, porque cientistas precisam de dados e esse é um dado disponível. Mas também há muita crítica de indicadores, incluindo o índice de percepção deles. Ou seja, não é que o indicador seja abraçado, é tratado de forma crítica, como de resto tem que ser.
A seção brasileira da Transparência Internacional parece bastante parcial. Concorda?
Depois do que foi revelado com a Vaza Jato, creio que a Transparência Internacional no Brasil precisaria de um reboot. A organização desenvolveu proximidade excessiva com agentes públicos que cometeram graves abusos, com os quais dividiria o controle de bilhões em verbas públicas negociadas em acordos de leniência, não fosse uma intervenção providencial de Raquel Dodge e Alexandre de Moraes (refere-se à fundação que integrantes da força-tarefa da Lava Jato queriam criar, e que seria administrada por eles). Não acho que nada disso seja papel de uma organização da sociedade civil. Mas mesmo tudo isso vindo à tona, jamais houve mea culpa ou mudanças na agenda e no discurso. Até a OCDE já reconheceu que houve politização da Lava Jato, a Transparência Inernacional no Brasil ainda não. A organização ainda está presa ao lavajatismo. E, assim, cada vez mais fora do seu tempo.
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