Eu me lembrava de Genézio de outros tempos. De quando minha mãe deixava na cabeceira da cama o livro “A águia e a galinha”. Nerdinho da família e aluno de cursinho metido a besta, pensava que era livro de auto-ajuda barata. Talvez influenciado pelas maledicências engraçadíssimas que meu professor Eloésio, de literatura, fazia contra os romances de Paulo Coelho. O tempo passou. Quase 20 anos depois, em 2018, vejo Genézio pela TV. Um senhor de 79 anos, solitário, sentado em frente à sede da Polícia Federal em Curitiba, barrado ao tentar visitar o então ex-presidente ( e preso político da Lava-Jato) Lula. Barbas brancas e longas, blusa vermelho-bordô, cachecol vermelho-sangue. Óculos. Calças longas. Bengala. A imagem era desoladora, o Brasil sucumbia à tragédia e à farsa bolsonarista. Tudo ia de mal a pior, mas o olhar de Genézio mantinha a mesma esperança, a mesma firmeza, a ternura de sempre. Afinal, Genézio já tinha passado por poucas e boas. Das agruras da Ditadura Militar aos “silêncios obsequiosos” impostos pela Igreja Católica.
Da terceira vez que vi Genézio, o vi pessoalmente, sentado serenamente à espera de um evento no Instituto Conhecimento Liberta. Me apresentei. Ele me olhou e disse: “Você não é o historiador…professor de História do ICL?! Minha companheira, Márcia, é muito sua fã.” E disse isso com aquela voz de profeta da ternura. Nessa hora, o professor-operário que aqui vos fala, não soube nem o que fazer. Meu coração se inundou de alegria. De fato, Márcia Miranda, companheira de longa data de Genézio, acompanhava verdadeiramente as minhas aulas e entrevistas. Foi por conta de Márcia, dona de um amor e de um bom humor sem fim, que pude ficar frente a frente com Genézio. Marcamos uma entrevista. Estavam, Márcia e Genézio, em São Paulo, para uma “turnê” do novo livro dele, “Terra Madura” (Editora Planeta).
E lá fomos ao estúdio. Como conversamos frequentemente, eu estava um tanto à vontade, como se conhecesse os dois há anos (e não é que já conheço?!). Mesmo assim, me perguntava: o que é que eu vou dizer ao Genézio?! Subimos. Convidei a Márcia para acompanhar a entrevista lá de dentro. Sentada nos bastidores do estúdio. Ela hesitou, não gosta das câmeras, deixa isso para Genézio. Mas cedeu e ficou lá. Feliz. Atenta. Começamos. Imaginem vocês ouvir histórias como aquelas dos livros e filmes de Dan Brown, mas muito melhores, bem humoradas, críticas e refinadas. Pois é! Genézio narrando como foi parar na cadeirinha de Galileu Galilei! Na salinha da “Inquisição”, diante do “trono” do “inquisidor” Joseph Ratzinger, que questionava no fim das contas a opção de Genézio pelos pobres e pela “Teologia da Libertação”. Mas Genézio não recuou, fez troça da cadeirinha e deixou o Cardeal e futuro Papa ardendo de raiva.
Genézio, apesar das reprimendas e castigos, nunca se calou. Seu silêncio era no máximo uma oração, mas desde então, quando o povo do Brasil e do mundo precisa dele, sua fala acolhe, instiga, fustiga os opressores, mas também sereniza as gentes, pacifica tudo o que alcança a sua voz. Genézio tem mesmo essas auras de encanto. É algo inexplicável, sua aura é chama e ternura, sua voz, guia na escuridão, sua presença é um amor que transcende. Ele trata todos os seus “irmãozinhos” e “irmãzinhas” – palavras que ele gosta de dizer – com um respeito absoluto. Genézio é a “Terra Madura” dos indígenas, é Gaza, é a Palestina, é o intérprete da dor das guerras, mas também é a cura. Genézio é e não é deste mundo. Voltei a compreender, com Genézio, o impacto implacável do homem-deus de Nazaré na luta por justiça e paz no mundo. E olha que “sou ateu graças a deus”, hein…
Devo dizer ainda que muitas histórias e confissões saborosas nunca entram totalmente em cena. Mas deixo uma aqui com vocês. Genézio me confessou que não gosta de Genézio. Genézio é na verdade Leonardo Boff, um dos teólogos mais importantes do mundo. Uma das figuras mais emblemáticas na luta por uma humanidade livre da fome, da guerra e da tirania. E não se iludam os desavisados, Leonardo é um pioneiro incansável. Sabe há muito que a “casa comum” está ruindo, suas linhas e lutas estão na “Laudato Si” do Papa Francisco. Leonardo Boff escreve, medita, luta e escreve, já tem mais de 100 livros. Boff lembra muito os épicos-fantasia contemporâneos que foram ao cinema: Tolkien e Rowling. É Gandalf e Dumbledore. Mas é nosso. Brasileiríssimo, dos sertões de Santa Catarina e de Concórdia para o mundo. É Antônio Conselheiro, Zé Maria e Zé Lourenço. É Leonardo. É do povo e para o povo. Até porque, “Genézio” significa origem, gênese, sempre a criar novas linhagens de amor e de esperança no mundo.
Finalmente, Leonardo Boff é de Sagitário, Márcia Miranda é de Libra. Ele, um franciscano “que se auto promoveu ao estado leigo”. Ela, moça de família tradicional, bourgeois, que reinventou sua vida em função da causa do outro. Quando encontro os dois, vejo uma imensidão de amor. Que sorte a minha, que sorte a nossa, que sorte a do mundo. Ao fim e ao cabo, já perto de irmos embora, quando Márcia Miranda e Chico Pinheiro falavam de samba, Leonardo – com 85 anos – sentado ao meu lado, falava do cosmos. Eu o ouvia mais uma vez atentamente, mas minha mente só conseguia cantarolar “Starman” do David Bowie, lembram? “There’s a Starman waiting in the sky…”
“Há um Homem Das Estrelas esperando no céu
Ele gostaria de vir nos conhecer
Mas ele acha que nos assustaria
Há um Homem Das Estrelas esperando no céu
Ele nos disse para não estragarmos tudo
Porque ele sabe que tudo vale a pena, ele me disse
Deixe as crianças se soltarem
Deixe as crianças aproveitarem
Deixe todas as crianças dançarem”
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