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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

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A chaga do abandono: população de rua aumentou dez vezes nos últimos dez anos

Isso acontece a partir do ataque elitista e neoliberal, que começa exatamente em 2013
14/12/2023 | 06h59

Segundo uma recente pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o número de pessoas em situação de rua aumentou dez vezes nos últimos dez anos. Desde 2013 até hoje, esses números saltaram de 21. 934 pessoas para 227.087 em agosto de 2023. Talvez nada mostre mais o processo de precarização das vidas nas margens da sociedade brasileira do que esses números.

Não por acaso, isso acontece precisamente a partir do ataque elitista e neoliberal, que começa exatamente em 2013, às mudanças sociais implementadas pelos governos do PT na década imediatamente anterior. Muito especialmente à política de valorização real do salário-mínimo que comprimia a taxa de lucro e a tentativa de redução dos juros pela presidenta Dilma Roussef, que comprometia os ganhos especulativos dos muito ricos.

A corrupção, como sempre na história brasileira, foi só a máscara ideal para transformar a dominação de classe mais abjeta em suposta defesa da moralidade pública. Mas foi este elemento que permitiu cooptar a classe média branca a desempenhar o papel de tropa de choque da elite nas ruas.

Afinal, as mudanças sociais visíveis como, para citar um único exemplo, a introdução de cotas sociais e raciais nas universidades, fizeram a classe média temer pelo monopólio de seu capital cultural.

A frente antipopular dessas duas classes sociais se manifesta no sucesso do golpe de 2016 e na adoção de um estrito programa neoliberal de precarizar o trabalho e reduzir qualquer veleidade de intervenção estatal. A estratégia era esvaziar o poder executivo, única instância onde projetos de país passam pelo crivo popular, de suas capacidades de intervenção. Assim, o mercado desregulado e suas leis de precarização dominaram os últimos dez anos praticamente sem reação popular.

Para os 80% da população que não são nem elite nem classe média, e que se dividem entre pobres remediados e pobres marginalizados, cada qual com uma fatia de aproximadamente 40% da população, o caminho foi para baixo. Se a decantada “classe C”, ou seja, os pobres remediados, não podiam mais investir num curso de inglês ou numa escola particular para os filhos, como no período Lulista, o buraco para a “ralé” de excluídos e marginalizados sempre foi mais embaixo.

Para os esquecidos e abandonados por séculos de opressão, este período foi vivenciado como insegurança e inferno existencial. O desemprego, o abandono de programas sociais para os mais pobres e a sensação individual inescapável de humilhação e desprezo social se associam de modo avassalador.

É preciso se compreender que os preconceitos construídos pela elite para legitimar seu poder, como a ideia de meritocracia, são, inclusive, mais aceitos – com grande convicção – precisamente pelos mais pobres.

Os pobres não são apenas economicamente vulneráveis. Eles são também cognitivamente e emocionalmente menos aparelhados para criticar as ideias dominantes forjadas contra eles. E é sensação de humilhação e fracasso, que a aceitação acrítica dessas ideias envenenadas provoca nos indivíduos, que joga as pessoas na rua e agem como dissolvente de relações familiares e sociais.

Nesse sentido, os números chocantes do aumento da população de rua, aliás algo facilmente verificável em qualquer grande cidade brasileira, apenas comprova os efeitos da guerra política contra os pobres desde 2013 e a afirmação conservadora.

É claro que a pandemia tem um peso nesse aspecto, mas nada se compara ao processo de precarização das vidas que desde sempre viviam sob a sombra da humilhação e da pobreza.

Esses números escancaram os motivos da política brasileira dos últimos dez anos: fazer os pobres retornarem à condição de precariedade que permite sua exploração pelo menor preço, pela elite e pela classe média branca, e a possibilidade de manter sua condição de humilhação, para melhor estigmatizá-los, o que é especialmente visível na população de rua.

O aumento que praticamente dobrou a cada ano, neste período, o número de abandonados é o melhor retrato do sucesso da empreitada antipopular do bloco elite/classe média na última década

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