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José Sócrates

Primeiro-ministro de Portugal, de 2005 até 2011

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A crise das avenças

Contra os governos socialistas, toda a violência; contra os governos do PSD, toda a compreensão
10/03/2025 | 06h56

Em novembro de 2023 o Ministério Público abriu um processo-crime contra o então primeiro-ministro com fundamentos que ainda hoje não se conhecem exatamente. O primeiro-ministro demitiu-se, o governo caiu, a maioria absoluta esfumou-se e cinco meses depois a direita regressava ao poder. Um golpe perfeito.

Estamos agora em 2025 e o país ficou a saber que o actual primeiro-ministro recebeu avenças de grupos privados durante todo o tempo em que exerceu funções — e o Ministério Público não abriu nenhuma investigação. Dizem que estão a analisar. As avenças provocarão uma crise política, isso é certo. Mas o caso está a evoluir. Não são apenas as avenças, mas a motivação política por detrás das investigações criminais: contra os governos socialistas, toda a violência; contra os governos do PSD, toda a compreensão.

Segundo ponto, Manuel Pinho. É absolutamente indecente as tentativas de confundir a situação de Manuel Pinho com a do actual primeiro-ministro. Não, não é a mesma coisa. No caso de Manuel Pinho os pagamentos que recebeu do BES resultam de trabalhos anteriores à sua entrada em funções públicas; no caso do actual primeiro-ministro os pagamentos à sua empresa resultam de trabalhos prestados durante o exercício de funções públicas.

Mais ainda: na circunstância de Manuel Pinho os pagamentos recebidos eram resultado de um contrato de rescisão que pôs fim à sua relação profissional com o banco; no caso do actual primeiro-ministro os pagamentos à sua empresa resultam de avenças que estão em vigor. Manuel Pinho foi investigado, foi preso e foi condenado injustamente. Ao actual primeiro-ministro não foi aberta nenhuma investigação.

Terceiro ponto. Em 2018 o Ministério Público português enviou ao seu congénere brasileiro uma carta rogatória pedindo informações sobre a Odebrecht e a construção da barragem de Baixo-Sabor. Em resposta, o Ministério Público brasileiro transmitiu às autoridades portuguesas a seguinte suspeita: “Há indicação ainda de que Pedro Passos Coelho candidatou-se a reeleição para primeiro-ministro de Portugal em 2015, e que campanha política foi capitaneada por André́ Gustavo Vieira da Silva.”

“Em tal contexto, considerando-se as provas apresentadas no evento 1, há indicativos de que os valores descritos na planilha ´Paulistinha´, que seriam um ‘saldo’ de pagamentos pendentes na obra da barragem portuguesa do Baixo-Sabor, possam ter sido pagos ‘por fora’ a André Gustavo Vieira da Silva como remuneração dos serviços de marketing eleitoral e publicidade prestado ao Partido Social Democrata na eleição para o cargo de primeiro ministro de Portugal.”

“( …) Deste modo, é possível que os pagamentos descritos na planilha ‘Paulistinha’ com referência à obra da barragem de Baixo-Sabor, em Portugal, possam-se referir ao financiamento da campanha eleitoral do Partido Social Democrata para eleição do cargo de primeiro-ministro, disputada em 2015 pelo ex-primeiro ministro Pedro Passos Coelho.”

Esta suspeita, concreta e definida, nunca foi investigada. Um pouco por todo o mundo foram investigadas dezenas de campanhas políticas financiadas pela Odebrecht — em El Salvador, no Peru, na Argentina, no Equador, na Venezuela, em Angola e por aí fora. Não em Portugal. Em Portugal foi tudo abafado. Tudo esquecido. O Ministério Público nem se deu ao trabalho de fazer perguntas.

Estamos agora em 2025, passaram dez anos, mas o comportamento é o mesmo: as avenças não merecem investigação. A crise das avenças é também a crise da dupla moral das instituições penais: de um lado investiga-se tudo, do outro encobre-se tudo. O critério para distinguir uma da outra é a política.

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