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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

A cultura brasileira de golpes de Estado

A função dos militares nesse contexto sempre foi fazer o serviço sujo para a elite
30/03/2024 | 08h06

Para melhor refletir sobre o golpe 31 de março de 1964, precisamos retirá-lo de seu contexto fragmentário como se fosse um evento único. A percepção fragmentária é, aliás, precisamente o que permite que a ideologia e a percepção superficial do mundo possam dominar nossa consciência e reger nosso comportamento. Sem a devida reconstrução histórica não compreendemos a lógica social maior que determina tudo que acontece na vida social. Daí que seja tão importante reconstruir e relembrar como foi formada a nossa “cultura brasileira de golpes de Estado”.

O ponto zero aqui é Getúlio Vargas, o demiurgo do Brasil moderno em quase todas as áreas da vida social. Getúlio criou não apenas as bases do capitalismo industrial e moderno e do Estado centralizado e racional no Brasil. Ele fez também a única, ainda que incompleta e parcial, “revolução cultural” brasileira na nossa história. Isso se deu pela afirmação da herança africana como pilar da nacionalidade e da nossa identidade cultural.

É a partir de Getúlio que o samba e o futebol, como praticado pelos negros, foram percebidos como motivo de orgulho e não de vergonha. A famosa lei dos 2/3 garantia, por outro lado, que negros e mestiços pudessem deixar a marginalidade e conseguir emprego formal protegido pela CLT. Como a maioria do povo negro e mestiço era percebido, até 1930, por literalmente todos, como a “lata de lixo” da história, afirmar a importância da cultura popular equivale a uma revolução de grandes proporções. Getúlio e a afirmação cultural da cultura e do negro interditou o racismo explícito no Brasil. Foi pela influência de Getúlio que se criou o “racismo cordial” brasileiro, quando se permanece racista, na dimensão afetiva, mas não se assume publicamente o fato.

O novo racismo envergonhado brasileiro tem agora o desafio de restituir o negro e o mestiço para a lata de lixo da história sem tocar na palavra raça. Coube a Sérgio Buarque fazer esta mágica e criar com seu talento o “vira-lata” brasileiro. O “homem cordial” sem nenhuma virtude além de corrupto e de eleitor de corruptos.  Agora a elite e a classe média branca têm uma nova arma para criminalizar o voto e a participação popular: a pecha de corrupto, válida só para o povo mestiço e negro. A classe média branca, pela origem europeia, jamais se identificou nem nunca foi identificada enquanto tal.

Como o sufrágio universal depois da Segunda Guerra veio para ficar, era necessário se criar uma válvula de escape toda vez que a elite e a classe média branca sentissem que seus privilégios estavam sendo ameaçados. A síndrome vira lata do povo corrupto se torna o dispositivo de poder para o bloco antipopular das classes do privilégio. Essa ameaça se torna real toda vez que o sufrágio universal ponha na direção do Estado um líder ligado aos interesses das classes populares, disposto a usar o orçamento público em benefício da maioria da população.

A posse do Estado é fundamental para a elite, posto que o Estado é seu ganha-pão. É a posse de fato do Estado que garante que a elite possa explorar e saquear a população como um todo. É uma elite improdutiva que vive da posse de monopólios estatais e políticos como dívida pública nunca auditada, violência no campo, juros escorchantes, privatização da riqueza pública e das empresas estatais, saque do orçamento público etc. A classe média branca se torna a tropa de choque desta elite por duas razões: Ele percebe qualquer ascensão popular como ameaça ao seu monopólio exclusivo do conhecimento legitimo; e se sente, como o agregado do século 19 já se sentia, parte da casa do senhor, parte desta mesma elite.

Desse modo, toda vez que a posse do Estado esteve com líderes populares aconteceu, invariavelmente, um golpe de Estado, quase sempre baseado em denúncias nunca comprovadas de corrupção. Getúlio inaugurou a lista que conta ainda com Jango, Lula e Dilma. O racismo cultural contra o próprio povo veio mascarar o onipresente racismo racial, transformando, literalmente, o racista de classe média e da elite em defensor da moralidade pública. E qual canalha racista não iria adorar ver seus preconceitos sob esta ótica?

Cono a elite domina toda a grande imprensa, como sua propriedade privada — além de controlar instituições-chave do próprio Estado, como hoje o Banco Central e o Parlamento — ela pode tocar o bumbo sempre a espreita da corrupção para se apropriar e saquear o Estado e suas riquezas. Esta é a cultura de golpes de Estado que se criou entre nós. Ela serve para que a República Velha se mantenha e se eternize com cara de nova, fazendo de conta que morreu para continuar bem viva. A função dos militares nesse contexto sempre foi fazer o serviço sujo para a elite e cobrar seu preço por meio de privilégios pessoais e institucionais. Mas a compreensão abrangente de todo o processo só é possível com a compreensão da forma específica que se dá entre nós da dominação das classes do privilégio sobre todo o resto da população.

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