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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

A escravidão dos ricos

Alguém sabe de algum dono de vinícola gaúcha preso?
27/06/2024 | 07h19

A família Hinduja, de origem indiana e atualmente considerada a família mais rica do Reino Unido, entrou nos holofotes da imprensa internacional por conta de um caso rumoroso de escravidão moderna. Um dos três irmãos, que detêm juntos cerca de 37 bilhões de libras esterlinas de fortuna, Prakash Hinduja, está envolvido, junto com a mulher e os filhos, em práticas de escravidão doméstica.

A família possui uma propriedade familiar em Genebra e as acusações envolvem maus tratos com empregados indianos contratados para o serviço da casa e do cuidado dos filhos. As alegações eram de confisco de passaporte, pagamento em rúpias, moeda da Índia, longas jornadas de trabalho e pouca liberdade para saírem de casa. A velha escravidão sob roupagens modernas. Nos tribunais ficou provado que os donos gastavam mais com o cuidado dos cães do que com as pessoas que trabalhavam lá. Apesar da família já ter realizado um acordo extrajudicial e confidencial com as vítimas, Prakash, sua mulher, seu filho e a nora foram condenados a penas entre 4 e 4 anos e meio de prisão pela Justiça suíça, dada a gravidade da ofensa.

O que esse fato nos ensina? Pelo menos duas coisas: 1) a exploração das pessoas mais frágeis e vulneráveis age em conjunto com o desprezo. Apesar das empresas e da família terem mudado para o Reino Unido em 1979, quando saíram do Irã, seus hábitos continuam presos ao sistema de castas Hindu que prescreve que algumas pessoas são condenadas a servirem as outras sem qualquer forma de contrapartida ou com contrapartida mínima.

O segundo ensinamento é que o sistema de castas Hindú é muito mais generalizado do que pensamos. Formas próximas deste caso são o dia a dia de muitos mexicanos, africanos e asiáticos nos EUA e na Europa. Entre nós a doença do desprezo social é endêmica. Este ainda é o caso muito especialmente dos negros no nosso país. Ocupando o último degrau da escala social temos a condenação dessas pessoas ao desprezo geral e ao trabalho seja desqualificado, seja escravo no sentido estrito, como vimos recentemente no Rio Grande do Sul.

Mas, ao contrário da Justiça suíça, que agiu exemplarmente, não se vê alguém ser preso no Brasil. Ou alguém sabe de algum dono de vinícola gaúcha preso? Seria interessante saber o que teria acontecido com a Justiça suíça se os algozes não fossem de origem indiana, mas sim alguma família tradicional da Suíça. Os europeus esperam este tipo de comportamento quando vindo do Sul global, fingindo que isso não acontece por lá.

Não é verdade. O racismo cultural é o substituto insidioso do antigo racismo racial aberto e hoje proibido pelo menos na esfera pública civilizada. Mas o racismo e o afeto racista continuam com outras máscaras e assume as formas mais variadas, uma delas a da família Hinduja.  Mas quantas outras famílias Hindujas temos, por exemplo, no Brasil? Quantas casas, vinícolas, fazendas, e indústria artesanal, praticam trabalho escravo entre nós? E mais importante ainda: quantos, em uma sociedade como a brasileira, não são desprezados e escravizados por um uberização atroz e sem direitos? Existe uma escravidão moderna muito parecida com a escravidão antiga no nosso dia a dia e poucos vêm.

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