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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

A esquerda morreu? Viva a nova esquerda!

Hackear o capitalismo é usar o seu próprio discurso contra ele mesmo
04/05/2024 | 05h00

O filósofo Wladimir Safatle defendeu, há poucas semanas, que a “esquerda” havia morrido, por falta de discurso e narrativa, ou nas palavras dele, a esquerda perdeu a gramática associada às lutas pela igualdade.

Por outro lado, paralelamente, têm-se uma extrema direita muito mais coesa e com narrativa própria. A esquerda tradicional e seu discurso teriam sido substituídos pelos progressismos identitários.

A outra conclusão importante é que o governo atual tende à conciliação e a um trabalho de mero gerenciamento das crises do capitalismo, sem uma visada de futuro.  A provocação de Safatle é certeira. Ele tem razão, pelo menos parcialmente, em todos os três tópicos acima.

O que eu discordo é que a gramática da igualdade não possa ter uma referência nova, mesmo no contexto de dominância absoluta do discurso neoliberal. Como dizia o jovem Marx, o capitalismo pode sempre ser criticado, desde que se compare o que ele diz que é com o que ele é realmente na prática.

Essa denúncia é o que é central para a esquerda e sempre foi. Daí que a conscientização do público seja um trabalho necessário e indispensável de toda perspectiva radical e crítica do capitalismo.

Seria possível a crítica radical da ordem neoliberal? Parece-me que sim. Tomemos o exemplo do “empreendedorismo” o discurso chave do neoliberalismo para culpar as próprias vítimas da pobreza e justificar sua desigualdade fática. Pela combinação com a falácia do discurso meritocrático — são os pobres quem mais defendem todos os preconceitos criados para oprimi-los — este é o discurso dominante entre os perdedores e oprimidos.

A ordem neoliberal realizou duas grandes proezas: criou um “novo espírito do capitalismo”, adequado aos novos tempos, e comprou todas as mídias tradicionais e modernas de modo que seu novo discurso pudesse chegar como mensagem unilateral para um público indefeso.

Ninguém mostrou a construção do novo espírito do capitalismo melhor do que Jean Luc Boltanski. Para Boltansky, o novo capitalismo é antropofágico e parasita todas as bandeiras libertárias da revolução dos anos 1960 segundo os seus próprios termos. Daí a linguagem da liberdade, da inovação e da criatividade que se combina no discurso atual, muito especialmente na noção de empreendedorismo.

O dado mais importante do capitalismo financeiro atual é que ele cria uma ordem impessoal sem a relação direta, que vigia anteriormente, entre patrão e empregado. Os empregos com aplicativos são os melhores exemplos.

A exploração é realizada por meio de algoritmos como se viesse do espaço sideral, sem qualquer interação humana, fruto de uma escolha técnica. O patrão se torna abstrato, como se fosse expressão da natureza das coisas.

Junta-se a isso o fato de que a mídia foi toda privatizada, tornando a crítica “a partir de fora” da gramática neoliberal impossível. A crítica, nos termos que vigia antes, se torna impossível e sequer é compreendida pelos oprimidos já subjetivados pelo novo discurso.

Ainda assim, este discurso pode ser criticado. Afinal, pode-se mostrar aos endividados e dependentes da nova ordem social que, em si, empreender não é mal e pode até ser muito bom mesmo desde que se preencha certas condições.

É necessário, especialmente, que o dinheiro flua da especulação financeira para o bolso da classe trabalhadora para que ela possa empreender. A palavra “empreender” é ruim, mas não temos escapatória possível senão denunciar o sistema vigente com o próprio discurso do inimigo.

Desse modo, o capitalismo, como vimos acima, pode sempre ser criticado, desde que se compare o que ele diz que é com o que ele é realmente na prática.

Pode-se dizer aos novos oprimidos, inconscientes do funcionamento da opressão social, que para empreender é necessário crédito barato e farto para todos. A Alemanha construiu todo um aparato bancário, as “Sparkassen” (literalmente caixas de poupança) para produzir, em uma dinâmica local e regional, crédito muito barato, perto, muitas vezes de 0% ao ano a quem precisa.

Isso permite recolocar os olhos dos oprimidos contra seu verdadeiro inimigo, posto que é uma elite improdutiva e rentista que fica com todo o dinheiro e impede o acesso a oportunidades econômicas às classes populares.

Ciro Gomes, em 2018, ao tocar em apenas um ponto do ideário dominante, e sem uma crítica explicita à dominação financeira em seu todo, que foi a fabricação maciça de uma sociedade de devedores, conseguiu amealhar, com pouca estrutura e dinheiro, 18 milhões de votos.

A nova esquerda, se for inteligente, pode deitar e rolar com as contradições do imaginário dominante. Ir contra o imaginário enquanto tal, é, pelo menos por enquanto, dar murro em ponta de faca. Mas pode-se utilizar o imaginário hegemônico, posto que falso — e toda falsidade pode ser demonstrada — para uma crítica ao sistema inteiro.

Desde a crítica a uma dívida pública não auditada e fraudulenta, que parasita o orçamento público, passando pelo descalabro do endividamento de uma população indefesa, até a demanda por chances e oportunidades iguais reais para que todos possam “empreender”. Para isso a esquerda precisa ser tão inteligente quanto o capitalismo foi e parasitar o discurso hoje hegemônico em seu próprio favor.

 

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