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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

A herança nacional de nepotismo e familismo

Muitos podem pensar: "são concursos públicos". Mas quem vocês acham que compõem as bancas dos “exames públicos”?
21/08/2024 | 10h20

Por todo o país vemos os filhos, sobrinhos, noras e cunhados se aproveitando da ocasião para fazer carreira se aproveitando do prestígio de algum líder político. Somos campeões neste quesito. Assim, um adolescente sem nada na cabeça como Jair Renan Bolsonaro deve ser eleito vereador na conservadora Balneário Camboriú com votação recorde sem nunca ter feito nada de produtivo na vida. Como ele existem pessoas de todos os partidos da direita à esquerda, um fenômeno verdadeiramente generalizado.

Isso não acontece apenas na política. Na verdade, o “prestígio”, essa coisa inefável e que poucos compreendem como funciona, é uma das heranças mais importantes para reproduzir toda espécie de privilégio de classe. O professor da UFPR Ricardo Oliveira tem um estudo interessantíssimo sobre a reprodução familista dos cargos públicos do Poder Judiciário do Paraná. Os juízes vão transferindo aos filhos nos últimos 150 anos a prebenda que conseguiram.

Muitos podem pensar: ‘São concursos públicos com banca examinadora e tudo para garantir a lisura da escolha’. Mas quem vocês acham que compõem as bancas dos “exames públicos”? Se não são os próprios parentes do candidato, são os amigos também juízes que fazem o trabalho sujo na certeza de que o beneficiado fará o mesmo com os seus filhos.

Outro caso interessante. O ministro Luiz Fux, do STF, segundo matéria da revista Piauí, ligava para seus amigos, pedindo para interferirem na indicação de sua filha de 32 anos para o cargo de desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Coisa que, para outros sem “paitrocínio” leva décadas de empenho e trabalho, dizendo: “É tudo que posso deixar para ela”, como se o cargo público fosse uma extensão privada de si mesmo.

Não é, portanto, só a política que se reproduz de pai para filho no nosso país. E também não são apenas os poderes Judiciário e Legislativo. Pensemos em Campos Neto, um economista medíocre com sobrenome famoso comandando o Banco Central. Também isso é familismo, ou seja, atenta contra a universalização das oportunidades e contra o próprio princípio burguês e capitalista do desempenho diferencial como legitimação do prestígio individual. O familismo institui, como na Idade Média, o sangue como reprodutor de privilégios.

Todos os privilégios sociais são repassados à próxima geração da mesma maneira. Quem é rico passa a propriedade. Quem tem prestígio, seja prestígio próprio, seja do cargo que ocupa, repassa o privilégio por meio de relações pessoais e de compadrio. Isso não é apenas um fenômeno brasileiro e existe em todo lugar. Mas a diferença é que aqui a desfaçatez impera e parece não existir limites para a prática.

O antídoto a isso é conhecido. Educação e informação de qualidade para uma população que, de outro modo, termina aceitando o que existe como se não houvesse alternativa possível. Essa é uma naturalização do privilégio de classe entre nós que já completa em breve 500 anos.

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