Em 1942, em Petrópolis, Stefan Zweig decidiu escrever as últimas palavras:
“Antes de deixar a vida, de livre vontade e de juízo perfeito, uma última obrigação se me impõe: agradecer do mais íntimo a este maravilhoso país, o Brasil, que propiciou a mim e à minha obra tão boa e hospitaleira guarida (…) a cada dia fui aprendendo a amar mais e mais este país (…) justo quando (…) o meu lar espiritual, a Europa, se auto aniquila.”
Sempre me entristeceu profundamente que o povo brasileiro não conhecesse suficientemente bem a história de amor que, em tão pouco tempo e com tanta intensidade, se construiu entre o grande intelectual europeu e o país que o acolheu no exílio. As palavras e o livro que aquele autor dedicou ao Brasil são da maior beleza e simplicidade — sincera e pura admiração: o país do futuro, dirá. Mas enfim, a memória histórica dos países é assim mesmo — tão vasta e grandiosa que é difícil escapar à ingratidão. Todavia, para quem acha que um dos problemas brasileiros tem a ver com um complexo de autoestima, que fique a saber que um dos maiores intelectuais europeus, um dos espíritos mais delicados e bondosos da cultura ocidental, amou profundamente este país e aqui escolheu morrer — de livre vontade e de juízo perfeito. Estas últimas palavras são de uma comovente ternura para quem, como eu, também ama o Brasil.
Mas voltemos ao texto, que mais que sobre o Brasil, quero escrever sobre a Europa. O meu tema é a Europa ou, talvez melhor dito, é sobre a Europa vista aqui do Brasil e inspirado nas ultimas palavras de um dos mais reputados escritores europeus. O texto, afinal, não é apenas um adeus ao Brasil, mas uma amargurada despedida da Europa. Diz ele:
“Assim, achei melhor encerrar, no devido tempo e de cabeça erguida, uma vida que sempre teve no trabalho intelectual a mais pura alegria e na liberdade pessoal, o bem mais precioso sobre a terra.
Saúdo a todos os meus amigos! Que ainda possam ver a aurora após a longa noite. Eu, demasiado impaciente, vou-me embora antes”.
Demasiado impaciente. Como o compreendo, eu que também nunca fui de esperar. Este texto foi escrito no final de 42, quando já os ventos da guerra tinham mudado (Estados Unidos tinham entrado na guerra). Todavia, as perspectivas eram ainda sombrias para quem considerava “a liberdade pessoal o bem mais precioso sobre a terra.” Todo o continente europeu estava ainda mergulhado nas trevas do domínio nazi. Para o autor, as duas guerras europeias, mortíferas e violentas, haviam destruído a sua confiança no mundo. Ele, demasiado impaciente, decidiu abandoná-lo — de cabeça erguida.
Quase cem anos depois, a sombra da violência política volta a erguer-se na Europa. A Itália tem um governo liderado pelo partido herdeiro do partido de Mussolini. Na França, toda a decisão política parece estar refém da extrema direita, enquanto a esquerda e o centro se enfrentam em batalhas políticas onde abunda o sectarismo e escasseia a defesa da República que deveria unir os democratas. A Alemanha parte agora para eleições debaixo da ameaça do crescimento da AfD, partido de extrema direita que acaba de receber o apoio de Elon Musk, um dos braços direitos do futuro governo americano de Donald Trump. O texto de despedida de Zweig não é apenas um texto sobre o passado, mas sobre um passado que insiste em ser presente.
A História da Europa é a de um continente de Janus, uma terra com duas caras — capaz do pior e do melhor. Capaz da barbárie de duas guerras mundiais e capaz de escrever a Declaração Universal dos Direitos do Homem. A União Europeia, construída laboriosamente nos últimos cinquenta anos, é o mais ambicioso e generoso projeto de integração política sem violência que o mundo viu ser construído. Hoje tudo isso está em causa. Esse patrimônio político de defesa do direito internacional, de defesa da paz e do diálogo entre as nações está a ser rapidamente substituído por uma retórica belicista e violenta que retoma os demônios do passado — os valores do sangue e do solo, que há cem anos mergulharam a Europa na mais horrível carnificina, parecem espreitar de novo a sua oportunidade. Sem nenhuma impaciência, mas com saudável realismo, é talvez altura de reconhecermos a triste verdade — o verão europeu acabou.
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