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Cristina Serra

Paraense de Belém, jornalista e escritora. Formou-se em jornalismo na Universidade Federal Fluminense. Trabalhou nos jornais Resistência, Leia Livros, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, revista Veja e Rede Globo. Tem quatro livros publicados. Atualmente, é comentarista do ICL Notícias.

A metástase miliciana no Rio de Janeiro

Emprego de Forças Armadas não é solução
25/10/2023 | 11h08

A demonstração de força dada por criminosos no Rio de Janeiro, nesta segunda-feira (23/10), em reação à morte de um miliciano pela polícia, é resultado de uma falência do poder público, em vários níveis, que vai muito além de complacência ou incompetência. O aparelho de Estado, no Rio, é parte do problema.

As milícias foram formadas por ex-policiais militares e bombeiros, agentes do aparelho de Estado que se tornaram criminosos, vendendo “proteção” em comunidades dominadas pelo tráfico de drogas. Expandiram-se e criaram um modelo de negócios que vai do transporte de vans ao fornecimento de água e gás, de tv a cabo e internet, à construção de moradias irregulares. Basta lembrar a tragédia da Muzema, em 2019. Hoje, grupos milicianos controlam bairros e comunidades onde vivem cerca de 1,5 milhão de pessoas.

Alguns grupos decidiram entrar também no tráfico. São as narcomilícias, que na disputa com as máfias das drogas têm levado a uma explosão de violência nas ruas. O recente assassinato de três médicos, na Barra da Tijuca, seria consequência dessa disputa por mercados e domínio de territórios. Ao que tudo indica, um deles teve a infelicidade de ser confundido com um miliciano.

Do poder territorial para o eleitoral é um pulo. Como chegamos até aqui? Alguns exemplos de um histórico de leniência (ou coisa pior). Quando prefeito do Rio, Cesar Maia manifestou muita simpatia pelas milícias. Chegou a classificá-las de “autodefesas comunitárias” e a considerá-las “um problema menor, muito menor que o tráfico”. Também nomeou um assessor que viria a ser indiciado pela CPI das Milícias, comandada pelo então deputado Marcelo Freixo, na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Como o mundo dá voltas, Freixo e Maia foram companheiros de chapa para o governo do estado do Rio, em 2022. Para fechar a chapa, Maia fez um mea-culpa pelo que dissera e passou-se uma borracha no assunto.

Outro que nutriu simpatias pela milícia – e depois disse ter sido mal compreendido – foi o atual prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD). Quando candidato ao governo do estado, em 2006, afirmou. “A tal da polícia mineira, formada por policiais e bombeiros, trouxe tranquilidade para a população.” Polícia mineira é um termo antigo para grupos de extermínio, que também foi usado para se referir às milícias.

Mas no quesito “simpatia é quase amor” pelas milícias, ninguém supera o clã Bolsonaro e suas notórias conexões com: Adriano da Nóbrega, chefe do Escritório do Crime (morto em operação policial na Bahia, em 2020); Ronie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz, assassinos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes; e Fabrício Queiroz, o famoso operador da “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro quando deputado estadual.

As milícias se consolidaram no Rio na lógica da barbárie, que prega fórmulas fáceis e violentas para problemas complexos. A síntese disso é a frase “bandido bom é bandido morto”, tão ao gosto, aliás, do atual governador, Cláudio Castro, e que convence tanta gente, ingênua ou não. O poder público foi uma espécie de sócio das milícias, beneficiando-se dos seus currais eleitorais, formados pela coerção e pelo medo imposto aos moradores.

Não existe solução simples para a metástase miliciana, consequência de sucessivos governos estaduais que não souberam, ou não quiseram, enfrentar as milícias. O Rio de Janeiro está num labirinto e sair dele demandaria esforços muito bem coordenados – e por muito tempo – de inteligência, recursos e atuação de todos os poderes públicos e órgãos responsáveis. Cláudio Castro não tem capacidade, nem força política, nem independência para tarefa de tal envergadura. Suas bravatas não convencem ninguém.

Lula cogita usar as Forças Armadas na contenção da crise, segundo informou o ministro da Justiça, Flávio Dino. A história mostra que este não é o melhor caminho. Ainda que não cogite em nada semelhante a uma intervenção federal, vale lembrar – a título de alerta – da operação desastrosa comandada por Braga Netto, em 2018, durante a qual Marielle Franco foi assassinada. Até hoje não se sabe quem foi o mandante do crime.

É louvável que Lula queira contribuir para tirar o Rio do apagão de segurança. Mas o presidente precisa tomar cuidado para não pôr no colo uma crise com tamanho potencial para resultar em fracasso.

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