Nesta polêmica do aborto há duas coisas que impressionam. A primeira é a monstruosidade da proposta, a segunda é a covardia da esquerda. É verdade que desde há muito o aborto se transformou na causa política favorita da agenda conservadora mundial, mas, ainda assim, ninguém tinha ido tão longe na proposta de regressão política. Transformar o aborto motivado por estupro, realizado após 22 semanas de gravidez, num ato criminoso punido como homicídio é uma proposta completamente obscena — ob scaena, fora de cena. É arrepiante pensar que, nos dias de hoje, um projeto destes pode adquirir suficiente respeitabilidade para ser aceite como proposta séria e considerada como urgente na tramitação legislativa. No dia a seguir, piorou. No dia a seguir ouvi uma senhora ministra falar na televisão afirmando que é ministra de um “Ministério da Mulher”, mas que esta questão não é do governo, que o governo ia ficar fora desta discussão, que este era um problema da Câmara dos Deputados e blá, blá, blá. Paradoxo: o governo não se mete em política.
Naquele momento lembrei-me de um antigo filme italiano (“Aprile”) em que Nanni Moretti, conhecido realizador e ator, está a assistir na televisão a um debate eleitoral entre Sílvio Berlusconi e o líder de esquerda e levanta-se, furioso, para dizer: “D’Alema diz qualquer coisa de esquerda”. Também eu fiquei à espera de que alguém do governo dissesse alguma coisa de esquerda. Mas ninguém disse nada. O momento pré-eleitoral parece ter deixado os líderes políticos na incômoda e desprestigiante posição de colocar o ouvido no chão para sentir o estado de alma do país. A direita sentiu o medo e cavalgou o assunto; a esquerda ficou paralisada. Há alturas em que o calculismo político nos deixa sem palavras.
Mas o país reagiu. A reação não veio de forma orgânica e institucional, mas o clima de revolta nas redes sociais foi suficiente para muitos responsáveis perceberem que as mulheres brasileiras não iriam ceder direitos sem luta. Nessa altura a esquerda acordou. Nessa altura, cerca de vinte e quatro horas depois, a esquerda percebeu que a política nacional não está assim tão refém da posição dogmática dos círculos evangélicos, como muitos pensam. O colunista de um jornal (o Estado de São Paulo para ser mais preciso) escreveu com graça que “faltou combinar com a sociedade”. Acertou em cheio: o Brasil mostrou que é melhor do que isso. Muito melhor.
A decisão de abortar naquelas circunstâncias (em consequência de um estupro) é em si própria uma decisão tão angustiante que bem dispensa a violência estatal da polícia e dos procuradores. Além do mais, como a experiência nos ensina, essa ameaça de violência estatal só conduz ao aborto clandestino — tudo será feito de igual forma, mas em piores condições. Para quem defende a vida e a saúde pública o melhor é deixar essa decisão nas mãos da mulher: ninguém faz um aborto com gosto, a criminalização só traz sofrimento ao sofrimento já existente. E se a esquerda já não é capaz de defender estes direitos da mulher, pelos quais tanta gente lutou ao longo do século 20, é altura de perguntar para que, afinal, serve a esquerda. Entre o cálculo e a convicção há uma diferença importante — a segunda está de bem com a consciência, o primeiro não está.
Ericeira, 22 de junho de 2024
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