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Cristina Serra

Paraense de Belém, jornalista e escritora. Formou-se em jornalismo na Universidade Federal Fluminense. Trabalhou nos jornais Resistência, Leia Livros, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, revista Veja e Rede Globo. Tem quatro livros publicados. Atualmente, é comentarista do ICL Notícias.

A morte de Ana Clara foi crime

Organizadores do show transformaram o estádio numa câmara de tortura
22/11/2023 | 05h00

O artigo desta semana é um desabafo. Escrevo sob o impacto da morte de Ana Clara Benevides, a estudante de 23 anos, de Mato Grosso do Sul, que se despediu dos pais para realizar um sonho, no Rio de Janeiro: assistir ao show da cantora Taylor Swift. Ana Clara voltou para casa num caixão.

Segundo o testemunho de uma amiga que a acompanhava, a estudante perdeu os sentidos na segunda canção do show. Suprema ironia: a canção se chama “Cruel Summer”. Em tradução livre: “Verão Cruel”.

Uma vida acabou aos 23 anos, sufocada pela ganância e pela insanidade que transformaram o estádio do Engenhão numa câmara de tortura, onde estavam 60 mil pessoas para assistir a um show de música. A sensação térmica no local chegou aos 60 graus! Ana Clara foi socorrida, mas teve uma parada cardiorrespiratória e não resistiu.

Em plena onda de calor, sobre a qual o Brasil inteiro foi alertado, o protocolo estabelecido pela empresa organizadora do show – a Tickets for Fun ou T4F – proibia que o público entrasse com garrafas de água. Lá dentro, um copo de 200ml era vendido entre R$ 8,00 e R$ 10,00. Vídeos na internet mostram que a cantora chegou a interromper o show para pedir a distribuição de água para os fãs. Ao que parece, não foi atendida. Pelo menos, não de acordo com a necessidade exigida pelas terríveis circunstâncias.

Ainda de acordo com depoimentos em redes sociais, os espaços de ventilação do estádio estavam cercados por tapumes (supostamente para melhorar a acústica do local). Também há relatos e imagens de pessoas que se queimaram nas grades e em placas de metal colocadas no piso. Sim, você leu certo: placas de metal. Mais de mil pessoas desmaiaram, outras tantas reportaram tontura, mal-estar, vômito e desidratação. Fãs também relataram ter recebido a recomendação de tomar remédio tarja preta no posto médico do estádio. Um dos efeitos colaterais dos remédios recomendados é… desidratação.

Diante da onda de calor devastadora, ninguém da empresa pensou em retirar os tapumes? Em distribuir água gratuitamente? Qual ou quais órgãos públicos fiscalizam um megaevento como esse? Houve alguma fiscalização no local? Ou a empresa faz o que bem entende? Há muitas questões que precisam ser esclarecidas.

Em um post no Facebook, o jornalista Alceu Castilho, publicou que o dono da T4F é o italiano Fernando Alterio, milionário bon vivant, morador do Jardim Europa, em São Paulo. A T4F foi fundada em 1998 e está em mais quatro países, além do Brasil. Castilho levantou que o lucro líquido da empresa foi de R$ 16,3 milhões, referente apenas ao segundo trimestre deste ano, o que representa uma alta de 89% na comparação com o mesmo período em 2022.

Ainda segundo Castilho, no acumulado de 2023 até o terceiro trimestre, a receita líquida da T4F foi de R$ 361,1 milhões, alta de 28% em relação ao mesmo período do ano passado. Sabe-se também que a T4F foi alvo de denúncias de trabalho análogo à escravidão durante fiscalização do Ministério do Trabalho, em março deste ano, na montagem do festival Lollapalooza, em São Paulo. A fiscalização encontrou cinco trabalhadores em condições degradantes.

São abundantes os indícios de irregularidades no show de estreia de Taylor Swift. A morte de Ana Clara não foi acidental. Foi um crime e como tal deve ser investigado pelas autoridades. Há responsabilidades a serem apuradas, por ação ou omissão, que vão muito além da falta de respeito com o consumidor.

Precisamos de um choque de indignação contra empresas que tratam pessoas como gado. Bateau Mouche (quem lembra?), Mariana, Brumadinho, Ninho do Urubu, Boate Kiss e essa T4F têm na raiz o mesmo descaso com a vida humana. Casos como esses continuarão se repetindo enquanto houver impunidade. Chega!

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