Damares Alves assumiu o cargo de ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos e no seu discurso de posse, afirmou: “O Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã”. Isso ocorreu precisamente no dia 02 de janeiro de 2019. Dessa forma, mostrava suas credenciais numa autodefinição inusitada. Para ativistas dos direitos humanos, comunidade LGBTQIA+ e movimentos feministas, a autodesignação soou como ameaça.
O que seria uma cristã terrível? Ainda que não soubéssemos exatamente, tínhamos uma pista: Damares fora assessora parlamentar do senador Magno Malta (PL–ES) e nas suas falas alardeava que o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) punha a família tradicional brasileira em risco, uma vez que postulava a desconstrução da heteronormatividade.
No primeiro semestre do Governo Bolsonaro, Damares foi a ministra com maior visibilidade, ainda que tivéssemos grandes personagens entre os ministros, como o Sergio Moro (Ministro da Justiça) e Paulo Guedes (Ministro da Economia). Entre os críticos do Governo Bolsonaro havia quem interpretasse a visibilidade intempestiva da pastora como cortina de fumaça intencional para encobrir os atos da equipe de governo nos primeiros meses.
Ainda sobre as intempestividades retóricas da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o cientista político Leonardo Avritzer coloca numa perspectiva mais ampla. A negação da política durante a campanha eleitoral foi remodelada, uma vez que o Governo Bolsonaro não podia negar-se a si mesmo. Durante o primeiro ano do governo, os personagens que conseguiam ser mais agressivos no que eles entendiam como fase de demolição alcançavam maior visibilidade. Nesse contexto encontrava-se a Ministra Damares. Segundo Leonardo Avritzer:
“Ele chegou à Presidência não como líder político, mas como alguém disposto a destruir políticas e políticos. Durante o primeiro ano de governo, foi em ministérios-chave como Educação, Meio Ambiente e Direitos Humanos que essa concepção se expressou melhor. Seus ministros foram nomeados devido à capacidade de tensionar com a respectiva área” (AVRITZER, 2020, p. 10*).
No dia 10 de julho de 2019, o presidente Jair Bolsonaro participou de um culto na Câmara dos Deputados sob patrocínio da Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Entre cantos e orações, vários tipos, diversas versões do “terrivelmente evangélico” disputavam uma posição privilegiada para serem fotografados ao lado do presidente da República. Foi nesta solenidade política/ religiosa que Bolsonaro plagiou a Ministra Damares. Afirmou que durante a sua gestão teria direito a indicar dois ministros ao Supremo Tribunal Federal (STF) e que um deles seria terrivelmente evangélico.
O presidente não só plagiou, mais do que isso, restringiu o termo cristão à designação “evangélico”. A promessa à FPE na Câmara era que ela teria uma representação à altura no Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro foi mais explícito em culto realizado no dia 10 de maio de 2019 na Igreja Assembleia de Deus Ministério Madureira, em Goiânia:
“Com todo respeito ao Supremo Tribunal Federal, eu pergunto: existe algum, entre os 11 ministros do Supremo, evangélico? Cristão assumido? Não me venha a imprensa dizer que eu quero misturar a Justiça com religião. Todos nós temos uma religião ou não temos. E respeitamos, um tem que respeitar o outro. Será que não está na hora de termos um ministro no Supremo Tribunal Federal evangélico?” (CALGARO; MAZUI, 2019).
Eis porque os protestos com a indicação de Kassio Nunes Marques para o STF foram incisivos por parte da FPE. Frustrada, a base política bolsonarista em questão reclamou que não bastava ser jurista, cristão, católico ou mesmo desembargador de notório saber jurídico, a promessa era que o novo ministro do STF indicado pelo presidente da República seria alguém terrivelmente evangélico. Portanto, não servia qualquer cristão, nem mesmo qualquer evangélico, o combinado era que fosse um tipo específico de evangélico. A ameaça de Damares plagiada por Bolsonaro ainda não havia sido cumprida, mas era questão de tempo.
O plenário do Senado Federal aprovou a indicação de André Mendonça para o STF no dia 01 de dezembro de 2021. A chegada ao Supremo de um ministro evangélico em nada ameaça à ordem democrática ou as bases do Estado laico. No entanto, quando o Presidente da República utiliza como critério fundamental para indicar o novo membro da Corte o ser evangélico, um tipo específico de ser evangélico, então, não podemos deixar de estranhar as motivações. Logo após a confirmação que o plenário do Senado havia aprovado a indicação de André Mendonça, um grupo, numa reunião privada, manifestou sua alegria. André Mendonça e sua família estavam cercados por políticos e amigos. Em êxtase, a primeira-dama Michelle Bolsonaro extravasou a sua alegria falando em línguas estranhas (fenômeno da Glossolalia — do grego γλώσσα, “glóssa” [língua]; λαλώ, “laló” [falar]).
O que para alguns poderia ser um constrangimento por tal manifestação reverberar numa república laica, tornou-se motivo de orgulho para muitos líderes eclesiásticos e membros da FPE que compõem a base política bolsonarista. Assumiram o “terrivelmente evangélico” como se fosse uma distinção honrosa. Como foram veementemente contrários à indicação de Kassio Nunes Marques, foram intensos nas comemorações quando o plenário do Senado aprovou a indicação de André Mendonça.
As congratulações se estenderam como se realmente a chegada do Mendonça ao STF fosse uma vitória da igreja na guerra moral. Deputados e Senadores membros da FPE buscaram capitalizar o feito. Menções ao presidente Bolsonaro como se fosse um estadista que cumpre suas promessas de campanha e como se estivesse muito próximo das comunidades evangélicas. Para todos os efeitos, o contexto mais amplo da atuação da FPE seria o governo “terrivelmente evangélico”.
* AVRITZER, L. Política e antipolítica: a crise do governo Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.
Deixe um comentário