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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

A poesia, a geopolítica e a guerra

A FLUP transforma o Rio em outubro na capital mundial da poesia falada
22/10/2023 | 19h00

Poeta em show em Kinshasa

“Não importa nada / Nem o traço do sobrado

Nem a lente do fantástico(…) / Ninguém, ninguém é cidadão”

(Caetano Veloso)

Estreio hoje neste espaço com alegria, querendo pulsar vida e vibrar paz. Justamente por isso o tema de início é… guerra. Incrivelmente, entre o dia em que escrevi este texto e sua postagem, estourou o feroz conflito tendo Israel e a Palestina no epicentro. Mais uma prova de que a escrita capta as vibrações reinantes na humanidade. A guerra é “despoesia”, ela é a indecência do espírito humano. Por isto e por tudo falar sobre guerra é incontornável para quem deseja o oposto.

A batalha de que falo tem sangue jovem, tem dor e silêncio, mas também tem rima, cadência, luz e alegria. Está acontecendo até o dia 22 de Outubro,  no lugar que Heitor dos Prazeres nomeou como “Pequena África”, o morro da Providência (primeira favela do Brasil e o berço de Machado de Assis), a Festa Literária das Periferias (Flup), o II Mundial de Slam, batalhas de poesia falada que conquistam a juventude periférica planeta inteiro. São 40 poetas de 40 países em solo carioca declamando, gritando ao mundo suas verdades, angústias e esperanças.

Os mega confrontos mundiais só existem porque os embates locais são alimentados no conta gotas da invisibilidade e dos discursos de ódio. É quase Bíblico, “no princípio era o verbo”. A palavra tem sim o poder da criação e da destruição.

Agora, exatamente neste momento no Rio de Janeiro, estão acontecendo batalhas. No entanto, esqueça por hora a segurança pública que despeja nas favelas violência sistêmica resumida magistralmente nos versos da música “Haiti”, de Caetano Veloso: “(…) a fila de soldados, quase todos pretos, dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos e outros quase brancos, tratados como pretos…” etc.

Não se iludam. Liberdade de ir e vir é privilégio… e privilégio branco. Enquanto países europeus são donos dos considerados “passaportes poderosos”, podendo fazer viagens sem necessidade de visto, países do oriente médio, africanos e caribenhos enfrentam barreiras quase intransponíveis, mesmo para participar de algo cuja grande arma é a palavra (ou seria exatamente por isto?).

O Brasil possui entendimentos com cerca de 90 países e adota uma política de concessão de vistos com base no princípio da reciprocidade, mas a questão global dos refugiados e a ausência de voos regulares dificulta o trânsito internacional de muitos dos campeões de slam nacionais que conquistaram suas vagas no mundial no Rio de Janeiro.

Por traz do charme e do poder criativo que jorra de tanta gente diversa, foi preciso um esforço diplomático para percorrer um campo minado, por vezes, literalmente. Alguns ficaram pelo caminho na batalha silenciosa que tenta impedir que a arte flua e as mãos se entrelacem. Muitos artistas não conseguiram sair dos seus países de origem.

É o caso do poeta Djebi Kirikoutis, 27 anos, do Haiti, ansiosamente aguardado pelos brasileiros. Ele tenta, desde 2020, sem sucesso, participar da Copa América de Slam, o Slam Abya Yala, também promovida pela Flup no Brasil, e teve o visto repetidamente negado, mesmo apresentando toda a documentação exigida para viajar para o Brasil. Este ano, Djebi, foi vencido pela impossibilidade de chegar ao aeroporto de Santo Domingo porque o país fechou as fronteiras e o Haiti não tem aeroporto.

A poeta do Níger, Fa2Mathsa, 27 anos, vive o conturbado contexto político no país, com fronteiras fechadas e toques de recolher. Não há representação diplomática brasileira no país e ela não consegue ir ao Benin, mais de mil quilômetros de distância, para dar entrada na documentação.

Em tudo isso há o toque do racismo, do classismo, das mentes obtusas e retrógradas. O general com armas mais letais neste confronto tem “ignorância” como nome e “colonial” como sobrenome. A maioria dos vôos africanos passa pela Europa e o continente que colonizou, explorou e empobreceu grande parte da África, teme que os artistas engrossem o número de imigrantes em suas terras. A recomendação é que viajantes de África evitem aeroportos europeus para conseguirem seguir para o destino.

Como se não bastasse todo este caminho de horrores, Slam é poesia falada e poetas enfrentam, muitas vezes, a exigência de apresentar um livro para provar que possuem a autoria de seus poemas, precisam provar que são poetas. O que gera desconfiança em consulados e escritórios diplomáticos.

A poesia no caminho do G20 – A guerra do Slam e a geopolítica bota no olho do furacão as relações internacionais entre Brasil e África, num momento de reaproximação e atualização da política brasileira para o continente, que trabalha para incluir a União Africana do G20.

Estão na Flup poetas oriundos do Togo, Mauritânia, Burundi, Senegal e Mali. Para que Slim Shaka, 28 anos, do Quênia, conseguir soltar a voz no Morro da Providência,  o Ministério das Relações Exteriores concedeu um Visto de Cortesia, modalidade especial oferecida apenas a artistas e desportistas estrangeiros que viajem ao Brasil para evento de caráter gratuito e eminentemente cultural, o que é o caso do festival literário carioca. O visto especial não garante liberdade de trânsito por outros países, porém abre muitas portas. Sem ele nenhum passo poderia ser dado. Apesar de tudo, para chegar ao Brasil em outubro, Shaka precisou dormir no aeroporto em Istambul, na Turquia, aguardando uma conexão de quase 16 horas, para não correr o risco de deportação.

Na guerra do Slam contra o mundo, cada visto concedido foi uma batalha ganha e os organizadores celebraram com festa as autorizações da Nigéria, África do Sul, Gana, Gâmbia, Togo, Camarões, Quênia, Burkina Faso, Moçambique, Costa do Marfim, Mauritânia, Burundi, Senegal e Mali que se juntaram aos artistas da  Guiné, Marrocos, Bélgica, Itália, Luxemburgo, Inglaterra, Espanha, Eslovênia, Chipre, Eslováquia, República Tcheca, Irlanda e Lituânia; Israel, Japão, Nova Zelândia e Austrália; Canadá, México, República Dominicana, Costa Rica,  Uruguai, Colômbia, Chile, Venezuela, Peru, Argentina e Brasil.

Machado de Assis, muito antes de ser o “Bruxo do Cosme Velho”, já era o “Cria da Providência”. E é de lá que sairá o grito poético de liberdade que deve contaminar o mundo.

Que bom que ainda exista quem enfrente até a guerra para espalhar poesia.

O Haiti é aqui.

E aqui também é o mundo.

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