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A praça, o herói e a matriarca

A praça, o herói e a matriarca estão juntos  até hoje, firmes na Avenida Presidente Vargas
20/11/2023 | 07h22

Por Vivi Fernandes de Lima*

Tia Ciata encontra com Zumbi dos Palmares mais uma vez neste Dia da Consciência Negra. Ela, mãe de santo, quituteira e matriarca do samba do Rio de Janeiro do início do século XX; ele, líder do Quilombo dos Palmares, o maior da história do Brasil, aniquilado no século XVII. Milhares de quilômetros e séculos separam esses dois personagens, mas o encontro está marcado e divulgado nos jornais: tambores, cantos, danças e teatralizações seguem em cortejo da Rua Benedito Hipólito rumo ao monumento a Zumbi, no meio da Avenida Presidente Vargas, na região Central do Rio.

Programado anualmente para acontecer no dia 20 de novembro, data da morte do quilombola, esse encontro parece acontecer muito antes de o monumento existir. É o que informavam as notícias sobre sua construção em 1986: “Cabeção negro vai representar Zumbi”, anunciava um título do jornal Tribuna da Imprensa no dia 11 de abril de 1986. A primeira frase da reportagem tentava explicar o aumentativo incomum: “Uma cabeça de três metros, em bronze, será o novo adorno da Praça Onze”. A iniciativa foi apresentada pelo então deputado José Miguel, líder do Movimento Negro do Rio de Janeiro à época, e abraçada por Darcy Ribeiro, então vice-governador, secretário de Cultura e realizador da homenagem. Ribeiro defendeu que a cabeça ficasse sobre uma base de quatro metros de altura para que pudesse ser vista de qualquer ponto da Avenida Presidente Vargas. Segundo ele, essa era a forma de assumir “que esse país tem uma cara morena, como já fizemos anteriormente no PDT, quando reconhecemos que se trata de um socialismo moreno”.

Por não se saber exatamente como era a fisionomia de Zumbi, a criação da peça se baseou  numa escultura nigeriana produzida em bronze que retrata a cabeça de Oni, rei de Ifé – cidade onde se acredita que o povo iorubá se originou. O local escolhido para a instalação do monumento também foi explicado pelo jornal e é neste ponto que Ciata e Zumbi se encontram:  “A escolha pela Praça Onze tem a sua história. Foi ali que os negros vindos da Bahia se instalaram, dando origem ao samba, no pagode da Tia Ciata”, referindo-se à baiana Hilária Batista de Almeida, que chegara ao  Rio aos 22 anos em 1876 e viveu no entorno da Praça Onze de 1899 a 1924.

Em novembro de 1986, o monumento foi notícia de novo, desta vez, com relatos sobre sua inauguração. Pelas linhas da imprensa Darcy Ribeiro não tinha dúvida que Tia Ciata, Praça Onze e Zumbi fizessem parte de um mesmo universo, o que tinha a “face negra”: “o herói retrata com certeza a dignidade e a beleza da face negra”, declarou na Revista Manchete. Por isso, além das presenças protocolares da inauguração – o governador Leonel Brizola, o prefeito Saturnino Braga e o próprio Ribeiro – compareceram diplomatas de países africanos e representantes de mais de 300 terreiros de umbanda e candomblé que assistiram, com uma plateia de cerca de 10 mil pessoas, a um espetáculo que contou com show de Gilberto Gil e Carmem Costa, que apresentou cânticos afro-católicos, e com participação, entre outros artistas, de integrantes da escola de samba Portela e do afoxé Filhos de Gandhi. O ator e produtor Haroldo Costa fez a direção artística e declarou que a inauguração do monumento “foi a coisa mais importante que aconteceu no Brasil para a raça negra nos quase cem anos depois da Abolição da Escravatura”.

Um detalhe dessa história desperta curiosidade: na ocasião da demolição da Praça Onze, o plano era instalar um monumento a Getulio Vargas no local. A história comprova que Zumbi, ao menos na simbólica Praça Onze, ganhou essa disputa. A praça, o herói e a matriarca estão juntos  até hoje, firmes na Avenida Presidente Vargas.

 

Vivi Fernandes de Lima é jornalista, mestra em Políticas Públicas e Formação Humana (Uerj) e doutoranda em Comunicação (Uerj).

 

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