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A Sorte da Europa joga-se em França  

Na desgraça desta noite eleitoral, o presidente Macron foi o único político europeu a ver claro e a tomar decisões imediatas
12/06/2024 | 14h25

Por José Sócrates*

Um dos aspectos mais deprimentes do projeto europeu foi sempre o seu governo burocrático (o governo de ninguém, na feliz expressão de Hannah Arendt) e a sua incapacidade para reconhecer algum problema.

O Brexit nunca foi um problema para os europeus, mas para os ingleses; a austeridade econômica não tinha alternativa; os refugiados eram apenas migrantes ilegais.

As políticas eram as melhores, a compreensão delas é que nem sempre estava à altura da excelência. Como poderia, aliás, ser de outro modo se a política europeia é conduzida por funcionários competentes, zelosos e devidamente colocados ao abrigo de qualquer eleição? Aqui, neste mundo irradiante e luminoso, o saber técnico não é importunado por essa coisa maçadora, demagógica e impreparada chamada vontade popular. E, no entanto, a realidade às vezes é forte demais — não, não está tudo bem.

O Brexit foi um rude golpe na União Europeia que se viu amputada de uma potência econômica e de um actor político mundial; a austeridade nunca foi uma política económica mas um ajuste de contas com o Estado social europeu; os cadáveres dos refugiados nas praias europeias acabaram de vez com a imagem da Europa fiel ao direito internacional e à Carta Universal dos Direitos Humanos.  Não, não está tudo bem.

Nestas eleições, a coisa piorou. A extrema direita alcançou o maior número de lugares de sempre no Parlamento Europeu. Ganhou em França com o dobro dos votos do partido do presidente, ganhou na Itália, onde o partido herdeiro de Mussolini está no poder há mais de um ano e ficou em segundo lugar na Alemanha, onde o partido AfD teve mais votos do que o partido social-democrata que está no poder.

Nas três maiores economias europeias a extrema direita alcançou resultados extraordinários. No entanto, para os burocratas europeus tudo correu normalmente — temos ainda maioria no Parlamento, dizem. O problema é que, quando se trata da extrema direita, perder a maioria significa que não costuma haver outra oportunidade para a reconquistar.

Na desgraça desta noite eleitoral, o presidente Macron foi o único político europeu a ver claro e a tomar decisões imediatas. O que aconteceu foi mau demais para disfarçar. É preciso enfrentar o problema e a República não se sustenta dando sinais de covardia. Vejo por aí muita gente preocupada com a táctica — não será arriscado? A extrema-direita não poderá vencer? Sim, pode. Claro que pode. Mas, nesse caso, será o povo, não os políticos da República, a assumir as responsabilidades.

Este pântano de ambiguidade política não pode nem deve continuar. Há duas coisas que os democratas não podem nunca fazer — a primeira, é ter medo de eleições, a segunda é ter medo de eleições. Sim, é preciso dizê-lo duas vezes: não temer a vontade popular. E se a disputa pelo projeto europeu, se a batalha pelo projeto de paz, de liberdade individual e de justiça social se der em França eu fico satisfeito. Ali sempre foi terreno da República. A sorte da Europa joga-se em França.

 

Ericeira, 11 de junho de 2024

 

*José Sócrates foi primeiro-ministro de Portugal de 2005 a 2011

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