A professora Adriana Romeiro, do departamento de história da UFMG, publicou recentemente, no site The Conversation Brasil, o texto: “Corrupção: traço perturbador do cotidiano político brasileiro é uma herança de séculos”, que foi republicado neste portal. A autora repete talvez o mais aclamado clichê da intelectualidade brasileira: que o problema brasileiro é a confusão entre o público e o privado. Seguido do segundo maior clichê/ que é a visão de que a corrupção está apenas ou principalmente na política. Ora, nada retrata melhor a “viralatice” da inteligência brasileira do que essas duas crenças absurdas. O mais irritante neste lugar comum é que ele se pretende crítico quando é a mais perfeita legitimação de uma opressão social perversa e, no fundo, racista.
Pelo espaço exíguo deste texto vamos diretamente aos fatos mais importantes. Ora, imaginar que somos um povo pré-moderno e atrasado pela confusão entre o público e o privado, é a crença ingênua, para dizer o mínimo. Ela pressupõe que existam povos honestos que separam cuidadosamente os dois espaços. Eu, que morei muitos anos em vários países ditos desenvolvidos e protestantes, jamais encontrei um ser humano que correspondesse a esta crença. Vamos pensar nos EUA, a pátria idolatrada como exemplo máximo de virtude por quase todos os intelectuais brasileiros, dentre eles Raymundo Faoro, citado pela autora, nos últimos cem anos.
Ora, a construção do império americano com poderio militar e influência econômica, esteve sempre e em todos os casos históricos, a serviço de uma pequena elite de proprietários interessados em aumentar seu poder global. O leitor consegue imaginar maior mistura de interesse público e privado? Vidas de milhões de jovens e centenas de bilhões de dólares utilizados em cada guerra, como a nefasta contra o Iraque, para que companhias de petróleo pudessem saquear o país. Olha que honestidade! Por que a rachadinha é vista como corrupção e mistura de publico e do privado e a privatização do poderio bélico americano, não é? É incrível a miopia que se cria por uma crença construída pelo opressor para retirar do oprimido qualquer reação pelo domínio de ideias envenenadas. É essa crença que estimula aceitarmos de bom grado entregar nossas empresas e nossa riqueza para os americanos, como fez a lava-jato, afinal nossos políticos são corruptos, enquanto os americanos são honestos, bonitos e inteligentes. Isso é literalmente roubar a inteligência de um povo.
O culturalismo que se cria, especialmente nos EUA, no início do século XX, vai ser aperfeiçoado pela teoria de maior sucesso global de todos os tempos: a “teoria da modernização” que tem em Talcott Parsons seu maior nome. A teoria da modernização imagina cidadãos protestantes ascéticos marcados pela disciplina e honestidade, como nos EUA e Europa Ocidental, e as “culturas inferiores”, latino-americanos, africanos e asiáticos, marcadas pela pessoalidade e pela corrupção sistêmica. E é assim que o mundo se pensa até hoje. Um contraexemplo importante: os paraísos fiscais que possibilitam uma corrupção planetária de evasão de impostos é uma imposição americana. França e Alemanha tentaram em 2011 mudar e Obama vetou. Isso não é um assalto planetário de proporções gigantescas? Isso não é corrupção sistêmica?
No entanto, o racismo cultural contra o Sul global é ensinado em todas as grandes universidades até hoje, forma todas as elites, e possibilita que a imprensa mundial e toda a indústria cultural repita esses preconceitos. Não à toa os latinos são ladrões e os árabes terroristas nos filmes americanos. Desse modo os preconceitos ganham uma conformação emocional, gerando aversão e antipatia. Essa visão tornou-se tão dominante que ela não é criticada por absolutamente ninguém nos países desenvolvidos. É uma crença hegemônica legitimada por um suposto prestígio científico. Mas serve para, como no exemplo da guerra de Israel contra a Palestina, que os palestinos não tenham empatia nenhuma de todo o assim chamado Ocidente. É que os israelenses são percebidos como brancos, ricos, modernos e ocidentais, como os alemães e os americanos. E os Palestinos, mais pobres, mais escuros, vistos como pré-modernos e inconfiáveis, como os latinos e africanos. Podem morrer, portanto, sem causar comoção e empatia.
Quando vemos a inteligência brasileira mais prestigiada, como Sérgio Buarque, Raymundo Faoro e Roberto Damatta – para nomear os criadores, já que a maior parte é de epígonos – e é ainda aceita como válido pela maioria dos intelectuais até hoje, compreendemos como funcionou tão bem a Lava Jato, a qual não teria existido sem esse preconceito. O tema do povo corrupto foi inventado em 1936 como reação da elite ao governo popular de Getúlio Vargas. Ele possibilita criminalizar o voto popular como um voto de corruptos eleitores de corruptos, desde que seja alguém empenhado em usar recursos públicos para a maioria da população.
Como boa parte da classe média branca, especialmente no Sul e em São Paulo, nunca se viu como parte do povinho mestiço e pobre brasileiro e se via e se vê ainda como europeu, e a elite de São Paulo como americana, pela transmutação do bandeirante em pioneiro ascético do trabalho e do empreendedorismo, então corrupto e inferior é apenas o povo, negro mestiço e pobre. Nada reedita melhor o preconceito racial, agora sem precisar usar a palavra raça, do que a ideia do povo corrupto. Ele invisibiliza a corrupção real da elite de proprietários, demoniza o Estado e a política, únicos espaços de participação popular e, criminaliza os votos daqueles vistos como lenientes à suposta imoralidade pública: o povo mestiço, pobre e negro. É preciso acabar de uma vez por todas com a tolice da inteligência brasileira. Ela estimula o racismo mais torpe sob a máscara do prestígio científico.
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