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‘Pior que a PM’: em abordagem da GCM, filha perdeu olho e pai, parte da visão

Em 2021, Geovanna Teixeira levou um tiro de bala de borracha na porta de casa e seu pai, Joab Teixeira, teve a visão comprometida por um estilhaço em abordagem de guardas em Osasco (SP)
16/09/2024 | 06h00

Por Jeniffer Mendonça — Ponte Jornalismo

A auxiliar de escritório Geovanna Tawanne Carvalho Teixeira, de 24 anos, começou a sentir incômodo com a prótese ocular que ganhou há pouco mais de um ano. Dor e secreção aparecem de vez em quando, o que a obriga a ir ao banheiro lavar o globo e o rosto para se sentir melhor na presença de outras pessoas. Até receber, por doação, a prótese que usa, a jovem passou um ano praticamente sem sair de casa — sempre atrás do par de óculos escuros que ainda carrega.

As sequelas físicas e psicológicas são de uma ação ocorrida há mais de três anos, no dia 2 de maio de 2021, quando guardas da Ronda Ostensiva Municipal (ROMU) de Osasco, na Grande São Paulo, dispararam tiros de bala de borracha na rua onde a família mora. Geovanna perdeu o olho esquerdo. Seu pai sofreu ferimentos graves e teve a visão comprometida. Os GCMs alegaram ter ido ao local dispersar um baile funk, quando foram agredidos por moradores.

A família afirma que não havia baile, que o pai estava bebendo num bar próximo de casa e acabou sofrendo agressões depois de um amigo ter reagido a uma cabeçada dada por um dos guardas. No tumulto que se seguiu, pai e filha foram atingidos: ele, por estilhaços de um dos disparos; ela, por um tiro de bala de borracha ao sair de casa para socorrer o pai.

“Não me sinto bem quando vejo a ROMU”, conta ela, de forma tímida. Mesmo com um dos agentes assumindo que fez disparos de bala de borracha naquele dia, a investigação da Polícia Civil ainda não foi concluída.

‘Padrão rota’

A ROMU é um grupamento da Guarda Civil Metropolitana (GCM) instituído em 2019 pelo prefeito Rogério Lins (Podemos), da cidade de Osasco, na Grande São Paulo. A tropa segue o modelo “padrão Rota”, em referência às Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, da Polícia Militar paulista. Boinas, caveiras, viaturas grandes e carabinas são alguns dos apetrechos que os diferenciam dos demais guardas civis. Esse modelo militarizado introduzido em diversas outras cidades tem sido utilizado como aposta política nas eleições municipais deste ano e desvirtuado o papel da GCM, segundo especialistas.

A investigação se arrasta há mais de três anos porque, segundo a Polícia Civil, falta realizar diligências e a assessoria da Secretaria da Segurança Pública afirma que as vítimas não compareceram à realização de exames adicionais de corpo de delito. No inquérito acessado pela Ponte, consta a requisição por parte do delegado Maurício José da Silva Pinto, do 8º DP de Osasco, de exames complementares de corpo de delito feitos às duas vítimas em setembro e em dezembro de 2023. Os documentos estão assinados por Geovanna e Joab, mas há uma frase escrita a caneta ao lado dizendo “não foi” ou “não foram”.

Pai e filha negam. “A gente vai na delegacia, mandam a gente para o IML e lá dizem que precisam de outros laudos e não fazem o exame”, afirma Joab. “A gente não entende por que não aceitam os laudos da internação que têm lá indicando que fiz uma cirurgia e retiraram o meu olho”, lamenta Geovanna.

Geovanna posa em frente à portão da casa, onde foi atingida em 2021. (Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo)

Os dois também afirmam não estar conseguindo obter a íntegra do prontuário no Hospital das Clínicas, onde passaram por cirurgia ainda em 2021, apesar de terem pedido a um conhecido que é advogado para solicitar a documentação.

Sem indenização

O andamento do inquérito impacta diretamente no pedido de indenização que Joab fez contra a Prefeitura de Osasco, já que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) determinou a suspensão do processo enquanto aguarda a conclusão do caso.

Joab denuncia que, durante a abordagem da ROMU, ele foi ferido depois que um amigo revidou com um soco uma cabeçada que recebeu de um dos guardas. Ao ouvir os gritos do pai, conta Geovanna, ela saiu de casa para ver o que estava acontecendo que foi baleada.

Os guardas da ROMU afirmam que Joab resistiu à detenção e que uma das pessoas no local teria puxado a arma do GCM Izaias Augusto de Souza e roubado um carregador com 18 munições. Por isso, teriam usado “de força moderada” para conter o tumulto e fizeram três disparos em direção a Joab, que “estava muito agressivo” e teria agredido com chutes e socos o GCM Izaias.

No entanto, vídeos feitos por moradores e divulgados na época pela Ponte não indicam qualquer aglomeração no local e mostram o amigo de Joab sendo agredido pelos guardas.

O exame de corpo de delito de Joab, feito pelo Instituto Médico Legal (IML) na época, identifica que ele foi atingido no rosto a dois metros de distância e registra lesões no braço e no tronco. “Com esse olho, enxergo como se fosse um vidro de box de banheiro embaçado, meio opaco. Para ler as coisas de longe, tenho dificuldade”, descreve ele.

O manual da Polícia Militar de São Paulo determina que o disparo de balas de borracha deve ser feito a no mínimo 20 metros de distância do alvo e sempre em direção às pernas.

Joab, que era gari na época e atualmente está desempregado, carrega as cicatrizes no braço e na costela, onde fez uma tatuagem para disfarçar a lesão. “Eu estava com muita vergonha de andar sem camisa na rua”, conta.

Já Geovanna ainda espera a indenização devida pela prefeitura de Osasco. Em 2022, o governo municipal foi condenado a pagar a ela R$ 70 mil por danos morais e estéticos, além de uma pensão vitalícia no valor de um salário mínimo. A pensão a jovem já está recebendo, mas a indenização não chegou. O processo corre em segredo de justiça e a única informação pública que a reportagem conseguiu foi a de que a ação está desde 2023 em cumprimento de sentença — ou seja, a gestão Rogerio Lins (Podemos) tem que cumprir a condenação.

A advogada Mariana Sobral, que representa a família, disse que recorreu da decisão por considerar o montante baixo, porém não quis informar se o valor foi mantido tal qual a sentença de primeira instância. Agora, segundo ela, o caso está na fila de precatórios — que é a fila de dívidas judiciais da prefeitura, sem previsão de data de pagamento.

Joab mostra cicatrizes no antebraço após ação da Romu em Osasco. (Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo)

GCM: ‘Pior que a Polícia Militar’

Enquanto isso, a família busca tocar a vida e afirma que, mesmo com a repercussão do caso, eles ainda têm notícias de abordagens truculentas por parte da ROMU no bairro. “Um rapaz teve o nariz quebrado acho que há uns 15 dias”, conta a autônoma Nycole Dafne Carvalho Teixeira, 26, irmã de Geovanna. “Aqui a ROMU é pior que a Polícia Militar. Mesmo não fazendo nada de errado, você fica com medo, já bate um gelo quando eles passam”.

Joab aponta que a sensação de segurança nunca chegou na periferia e que o próprio prefeito nunca se manifestou sobre o que aconteceu. “A gente sabe como funciona uma abordagem, o problema é que eles já chegam agredindo. Num bairro de gente rica eles nunca iam chegar assim”, acusa. “Se é preto e está na rua é assim que eles agem”, lamenta Geovanna.

Hoje, o maior sonho da jovem é conseguir uma nova prótese ocular para ter uma qualidade de vida melhor. Segundo ela, o custo é de mais de R$ 20 mil e os parentes não têm condições de arcar com esse montante. A irmã Nycole diz, revoltada, que o Estado é que devia fornecê-la: “Foram eles que destruíram a vida dela.” Tanto pai quanto filha não realizam tratamento psicológico.

“O que mais quero é a minha prótese e ver minha família bem e feliz. O resto a gente segue”, sonha Geovanna, que muitas vezes pensou em desistir de buscar responsabilização dos guardas e do Estado.

O que dizem as autoridades

A Ponte voltou a procurar a Secretaria da Segurança Pública (SSP) a respeito da requisição dos exames complementares e a conduta do IML de Osasco e aguarda resposta.

A assessoria do Hospital das Clínicas informou que não forneceu informações sobre o prontuário pois quem solicitou foi “um terceiro ao departamento jurídico do hospital”, que intermediou o contato com as vítimas. O HC disse que só os próprios pacientes podem solicitar documentos por conta da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e orientou que pai e filha contatassem o hospital novamente em dois e-mails — que a Ponte repassou a Geovanna e Joab.

A reportagem também buscou a Secretaria de Comunicação da Prefeitura de Osasco, mas não houve retorno até a publicação. Caso se manifeste, essa reportagem será atualizada.

 

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