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Admissão após indiciamento prejudica defesa de Bolsonaro em trama golpista

Ex-presidente confirmou mais de uma vez ter discutido estado de sítio; especialistas falam em deturpação da Constituição
07/12/2024 | 11h55

Ana Gabriela Oliveira Lima, da Folhapress

A admissão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) de que discutiu o estado de sítio com militares em 2022 prejudica sua defesa em processo envolvendo a trama golpista, na interpretação de especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo.

No dia 21 de novembro, o ex-mandatário foi indiciado pela Polícia Federal na apuração sobre tentativa de golpe. Segundo o relatório policial, ele planejou, atuou e “teve domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios” contra a democracia.

Uma semana após o indiciamento, Bolsonaro admitiu, durante entrevista à revista Oeste, ter discutido o estado de sítio e o estado de defesa com militares após as eleições de 2022. “Eu discuti, sim, conversei, não foi uma discussão acalorada”, afirmou, citando que um dos assuntos debatidos foi o artigo 142 da Constituição, que aborda as atribuições das Forças Armadas.

Ele já havia falado sobre o tema em outras ocasiões, como em manifestação de fevereiro na avenida Paulista, quando indicou saber da existência de minutas de decreto para anular a eleição do presidente Lula (PT).

Apesar da admissão, o ex-presidente nega ter participado de uma trama golpista. Segundo ele, as discussões que teve foram respaldadas pela Constituição, o que é rebatido por especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo.

Segundo Danilo Pereira Lima, professor de direito constitucional do Centro Universitário Claretiano e doutor em direito público pela Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), as falas de Bolsonaro sobre a discussão com militares indicam sua intenção golpista e confirmam o conjunto probatório sobre a trama apresentado pela PF.

Lima afirma que o ex-presidente faz uso de “uma leitura completamente equivocada” do artigo 142 da Constituição, que diz que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Na interpretação deturpada que costuma ser propagada por uma ala do bolsonarismo, as Forças teriam um poder moderador, ou seja, poderiam interferir em situações de conflito entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

“Mas as Forças Armadas não são um poder constituído. Elas compõem um órgão burocrático do Estado”, diz Lima. “Em qualquer situação de crise entre os Poderes, a tensão tem que ser resolvida pelos agentes civis. No regime constitucional democrático, o poder militar está sempre subordinado ao poder civil.”

O especialista afirma que não havia na ocasião justificativas plausíveis para acionar o estado de defesa ou de sítio, que é o “remédio mais amargo que a Constituição oferece para resolver uma crise gravíssima no país”.

O estado de defesa restringe liberdades individuais e é acionado para preservar a ordem pública ou a paz social ameaçadas por graves crises. Ainda mais extremo, o estado de sítio é previsto em casos de comoção de repercussão nacional ou guerra, por exemplo. Para ser decretado, precisa de autorização do Congresso Nacional.

Para Adriana Cecilio, mestra em direito constitucional e professora da Universidade Nove de Julho, Bolsonaro se autoincriminou ao admitir ter conversado sobre o estado de sítio.

Ela afirma que o ex-mandatário, ao tomar ciência de uma discussão sobre o tema sem justificativa cabível nos termos da lei, tinha o dever de agir contra a ação. Isso porque ele era, enquanto presidente, chefe supremo das Forças Armadas e, por isso, respondia pelos atos da instituição.

A professora também aponta uma deturpação do artigo 142 da Carta Magna para dar ar de legalidade ao golpe.

Segundo ela, a análise dos anais da Constituinte de 1988 aponta que, ao contrário da interpretação utilizada por bolsonaristas, os parlamentares da época escreveram o texto para “fechar as portas” ao alegado poder moderador das Forças Armadas.

“É possível depreender dos debates, sem qualquer sombra de dúvida, que o texto foi aprovado precisamente com os termos ‘poderes constitucionais’ com o intuito de estabelecer que as Forças Armadas estão submetidas aos três Poderes, ao controle do poder civil”, escreveu a professora em artigo sobre o tema.
“A teoria da ‘tutela militar’, da concepção das Forças Armadas como um Poder moderador, como vimos, foi objeto de debate e essa possibilidade foi debelada pelo constituinte originário. A Constituição não outorga tal poder às Forças Armadas”, continuou.

Em 2020, a Câmara dos Deputados emitiu parecer afirmando que o artigo 142 não autoriza uma intervenção militar para “restaurar a ordem” e mediar conflitos entre os Poderes. No texto, a Casa chamou a interpretação de “verdadeira fraude ao texto constitucional”. Já o STF (Supremo Tribunal Federal)rejeitou a tese sobre o
“Poder moderador” por unanimidade em abril de 2024.

Bolsonaro tenta minimizar golpe, diz jurista

Para a advogada criminalista Ana Carolina Barranquera, especialista em direito e processo penal, a admissão de Bolsonaro sobre as conversas a respeito do estado de sítio e do estado de defesa dificulta a situação do ex-presidente.

Ela lembra que essas falas não foram isoladas. Ao contrário, estão em contexto de “uma série de atos públicos e notórios” em que o político inflamou a desconfiança da sociedade contra o processo eleitoral.

Após a divulgação do relatório policial, porém, o advogado Paulo Cunha Bueno, que defende Bolsonaro, deu entrevista no último dia 29 à GloboNews afirmando que o ex-presidente não se beneficiaria com um eventual golpe de Estado. “Quem seria o grande beneficiado? Segundo o plano do general Mario Fernandes, seria uma junta que seria criada.”

De acordo com Juliana Izar Segalla, doutora em direito constitucional pela PUC-SP e professora da Uenp (Universidade Estadual do Norte do Paraná), a admissão de Bolsonaro tem implicações políticas.

“Parece muito mais uma tentativa de movimentar um núcleo de desinformação para dar uma aparência de legalidade e minimizar uma tentativa de golpe, instruída, inclusive, por um grupo jurídico”, afirma.

Essa tentativa de conferir um verniz jurídico ao caso é alarmante, na opinião da especialista, que justifica a preocupação com uma frase do advogado Lenio Luiz Streck sobre o tema: “Se hoje no direito há gente que relativiza golpe de Estado, é porque, paradoxalmente, o golpe deu certo”, diz.

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