No último dia 8 de fevereiro, um vídeo inusitado viralizou pelo mundo dos vivos: Adrián Simancas, um jovem venezuelano que passeava de caiaque com seu pai pelos mares gelados do Estreito de Magalhães, no extremo sul do Chile, foi literalmente abocanhado por uma baleia. A sequência é cinematográfica e digna das melhores fábulas. O homem de caiaque, num dos estreitos mais famosos do mundo — a passagem natural entre o Oceano Atlântico e o Pacífico — está no mar, remando, curtindo a vida perto da “natureza selvagem” e, não mais que de repente, a imensa jubarte — sem muito alarde — suavemente engole Adrián, que poucos segundos depois é “cuspido” de volta à vida pela imenso mamífero.
Em depoimento a diversos veículos de comunicação, Adrián narrou os segundos em que permaneceu na bocarra da jubarte, sentindo sua viscosa textura. Os três segundos entre a vida e a morte fizeram, supostamente, o jovem olhar o mundo e a vida em perspectiva, quase uma segunda chance. De imediato, lembrou de Pinóquio dentro da baleia, assustado, encontrando lá dentro Gepeto, seu “pai” criador . Ora, o fato de Adrián comparar sua inusitada situação ao clássico imortalizado pela Disney diz muito sobre as nossas relações — humanas — milenares com a fauna e a flora do planeta.
Venezuelanos em busca de uma vida melhor, Adrián e seu pai Dell se estabeleceram no Chile há 7 anos e, entre outras coisas, passaram a curtir momentos juntos ao assim chamado mundo natural. Contudo, o inusitado acontecimento deve ser colocado em perspetiva mais longa. A “natureza selvagem” desfrutada por pai e filho é há tempos “domada” pelo ímpeto humano, ou se quiseram, pela cobiça humana. A região do “Estreito de Magalhães” leva esse nome justamente porque — a serviço do rei da Espanha e imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Carlos V — o navegador português Fernão de Magalhães liderou a primeira e impressionante expedição marítima de circum-navegação ao redor do mundo. Durante a viagem, ele e sua tripulação foram os primeiros a chegar à Terra do Fogo, no extremo sul do continente americano, a navegar pelo assim batizado Estreito de Magalhães, que recebeu seu nome, e a cruzar o Oceano Pacífico, que ele próprio batizou. Durante a expedição, Fernão de Magalhães foi morto em batalha nas Filipinas. A expedição foi continuada por outros navegadores, tendo o navegador Juan Sebastián Elcano retornado à Espanha em 1522, completando a primeira circum-navegação do mundo.
A expedição de Magalhães foi um marco fundamental não apenas para a história da navegação e da exploração marítima (e para combater até hoje os tresloucados terraplanistas), mas sobretudo para consolidar novas rotas comerciais e conquistas territoriais que definiram o mundo moderno. Em outras palavras, começaram a estabelecer as bases históricas do que chamamos hoje de um único mercado mundial unificado. Na esteira de Fernão de Magalhães — além dos portugueses — espanhóis, holandeses, franceses e ingleses passaram a se lançar ao controle dos mares, oceanos e principalmente explorar as riquezas dos povos e territórios conquistados. A isso chamamos de história do capitalismo mercantil e sua busca incessante por ilimitadas mercadorias, incluindo o tráfico transatlântico de africanos escravizados.
A busca incessante por riquezas sem fim rompeu toda a lógica anterior do domínio material humano sobre o planeta e seus recursos, a ponto de muitos estudiosos situarem o início de uma nova época geológica da Terra a partir do assim chamado longo século 16, o século que lançou o capitalismo mercantil europeu para mares nunca dantes navegados. O problema é que essa época geológica – o antropoceno – é exatamente a época das grandes hecatombes: o tráfico e escravização de mais de 12 milhões da africanos, o genocídio – pela espada, cruz, pólvora, vírus — de dezenas de milhões de indígenas, a destruição completa de paisagens, montanhas, matas, rios, lagos e florestas, em suma, a extinção de inúmeras espécies animais e vegetais. Uma onda virulenta de incessantes extinções de tudo e de todos, que culmina no século 20 com a constante ameaça das bombas atômicas e do — já fora de controle — aquecimento global.
Os paradoxos da expansão do capitalismo mercantil, industrial e financeiro podem até confundir alguém mais ingênuo (ou quiçá, mal intencionado), levando o sujeito a pensar que sem os assim chamados “avanços da tecnologia”, não haveria “civilização” ou “civilidade” possíveis. Foi exatamente tal ideia, tal discurso, tal linguagem e tal violência material que construiu o capitalismo e paulatinamente vem destruindo não apenas a possibilidade da felicidade humana, mas a própria existência como ela é, a própria vida de todos os outros seres do mundo. É nesse sentido que a experiência de Pinóquio de Adrián e seu pai carregam uma dose brutal de cinismo, incluindo os dominantes meios de comunicação, que em nenhum momento questionam o “prazer” e a arrogância humana diante dos outros seres da natureza.
Ser “engolido” por uma baleia é fato antigo na condição (moral) humana. Lembremos da passagem bíblica de “Jonas e a baleia” que, uma vez desobedecendo seu Deus, foi parar na barriga de um grande peixe, onde lá rezou arrependido, pedindo perdão e sendo devolvido, “vomitado” pela baleia numa praia. Digamos que a parábola para a modernidade não é tão diferente assim. O que muda é que o Deus de hoje (desde 1492, no mínimo) é o capital e seu culto incessante. É como se a natureza, ultrajada pelos humanos capitalistas, desse um recado engolindo Adrián: “Não somos seus bichos de estimação!” Ou: “Parem de nos matar!” Ou melhor: “Parem de se autodestruir!”
E não nos esqueçamos que as baleias são vítimas preferenciais de um Deus capitalista tirânico, que há séculos caça o grandioso mamífero por todo o planeta, levando Herman Melville a imortalizar a indústria implacável de caça às baleias no clássico “Moby Dick”, de 1851. Exatamente no momento de expansão suprema (e supremacista) do capitalismo industrial e sua necessidade implacável por produtos derivados do imenso animal. Feliz seria Adrián (nós e o planeta) se por alguns segundos de fato fôssemos “engolidos” e depois “cuspidos” pelo inusitado, mas constante alerta do planeta.

“Jonas e a Baleia”, do pintor holandês Pieter Lastman, 1621. “O momento em que, segundo o Antigo Testamento, Jonas foi vomitado pela baleia, tendo permanecido três dias e três noites alojado no seu estômago, foi o momento em que reconheceu o poder de Deus. Lastman apresenta esta viragem crucial, quando o profeta ainda não atingiu a segurança da terra, num formato pequeno e que preenche toda a imagem. Ele coloca em primeiro plano, ao lado da fantástica criatura-peixe, o nu dramaticamente retorcido Jonas.” Fonte: Google Artes e Cultura. Museu Kunstpalast, Dusseldorf. Domínio Público.
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