Por Ingrid Gerolimich
Li recentemente um artigo de opinião publicado na “Folha de São Paulo”, intitulado “O feminismo errou”, onde a colunista que o assina, ao fazer uma análise da série “Adolescência” (Netflix), parece acreditar que um dos motivos de não conseguirmos barrar o avanço da misoginia seria um suposto erro atribuído ao feminismo em não abrir espaços de diálogo com os homens.
Essa me soa uma análise não somente reducionista de um problema que acredito ser muito mais complexo, mas, penso também que pode tornar-se um discurso perigoso nas vozes erradas, capaz de instigar ainda mais os ânimos daqueles que tem usado as feministas como foco das suas principais mazelas existenciais. Por isso decidi falar sobre a inquietação que senti.
A misoginia não cresce porque o feminismo supostamente se recusa a abrir espaços de debate com os homens. Se fosse esse o problema, acredito que a solução estaria bem mais ao alcance.
O embate atual entre feminismo e o crescimento do antifeminismo se insere em uma lógica dialética: à medida que as mulheres avançam, muitos homens reagem com hostilidade, na busca por manter a ordem social que os privilegia. Este movimento de emancipação inevitável das mulheres expõe, portanto, a fragilidade de uma identidade masculina alicerçada por tanto tempo na subordinação feminina.
Logo, o que estamos vendo hoje é a desestabilização dessa configuração. Homens enfrentam uma crise de papéis. Se por séculos foram ensinados que seu valor estava atrelado ao poder, virilidade, à provisão e ao controle sobre mulheres e família, quando esse modelo se esgota, muitos se vêm completamente perdidos, imersos na angústia do desamparo frente a um mundo que se desfaz diante de si, essa dor leva ao ressentimento, mola propulsora da violência.
Logo, penso que o verdadeiro foco deste debate deveria ser como enfrentar um sistema que ensina homens a viverem sob signos de um poder que, na verdade, elabora identidades tão frágeis que se desmoronam diante da “ameaça” da autonomia feminina.
Não reduzo com isto a importância do diálogo: ele é fundamental e urgente, sobretudo, com os meninos. Acontece que, generalizar que todo um movimento não busca o diálogo e levantar a responsabilidade deste debate pelo feminismo sem mencionar o problema maior, que são os conflitos de interesse que têm mantido a maioria dos homens alheios à necessidade de mudarem essa realidade, é não só inócuo, mas um tanto leviano.
Uma pergunta honesta: quantos grupos, iniciativas, ações de construção de uma masculinidade progressista, conhecemos? Quantos homens da nossa convivência estão verdadeiramente comprometidos com elas? Quantos deles estão nas redes sociais disputando narrativas com os red pills e tantos outros movimentos masculinistas?
Essa precisa ser uma luta dos homens. As mulheres estão no seu próprio “corre” emancipatório, não cabe a elas serem as tutoras emocionais dessa crise masculina, até porque, para isso, a maioria dos homens precisa antes reconhecer essa crise como uma necessidade de mudança em vez de tentar se manter no lugar onde estão.
Penso que os homens que se reconhecem como nossos aliados precisam se comprometer em construir freneticamente espaços de produção de uma nova masculinidade emancipatória capaz de fazer com que outras subjetividades possam emergir fora das lógica dicotômicas — “se elas levantam, nós caímos”, “se elas ganham, nós perdemos”–, não só pelas mulheres, mas por eles também, já que manter esse modelo atual de masculinidade é um fardo e uma fonte inesgotável de sofrimento.
Por último, preciso dizer que uma chamada ao debate por meio de títulos lacradores como “o feminismo errou”, que mais soa como uma sentença no lugar das tantas perguntas que precisam ser feitas, me parece que é justamente caminhar na direção oposta ao diálogo, correndo-se o risco de cair na mesma lógica daquilo que se pretende combater.
Nunca vi um diálogo começar com uma sentença, mas talvez com as perguntas certas ele possa florescer.
*Ingrid Gerolimich é psicanalista, socióloga, documentarista e escritora. É autora do livro “Para revolucionar o amor: A crise do amor romântico e o poder da amizade entre mulheres”. Tem artigos publicados e contribuições em veículos como Revista Cult, UOL, Revista Marie Claire, Revista Forum, Revista Carta Capital, Revista TRIP/TPM.
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