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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

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Afinal, o governo é burro ou só muito ingênuo?

A AGU, o Ministério das Comunicações e o caso da Jovem Pan
08/03/2024 | 09h07

A notícia de que a AGU, sob comando do Jorge Messias, e o Ministério das Comunicações,  tocado por Juscelino Filho, contraditaram a posição do MPF SP pela cassação de três concessões de rádios do grupo “Jovem Pan” por propaganda antidemocrática, pegou muitos de surpresa. Para a AGU, conforme apurado pela jornalista do ICL Notícias Juliana Dal Piva:

“Fundamentado em posicionamento do Ministério das Comunicações, o entendimento da União é o de que, ainda que a penalidade tenha previsão legal e a gravidade da conduta da emissora seja reconhecida, os abusos cometidos pela empresa devem ser reparados por outras medidas, como a aplicação do direito de resposta e a indenização pelos danos morais causados”.

Este posicionamento se deu em resposta ao MPF, que havia defendido em sua petição que:

“a Jovem Pan disseminou reiteradamente conteúdos que desacreditaram, sem provas, o processo eleitoral de 2022, atacaram autoridades e instituições da República, incitaram a desobediência a leis e decisões judiciais, defenderam a intervenção das Forças Armadas sobre os poderes civis constituídos e incentivaram a população a subverter a ordem política e social”.

A posição da AGU e do ministério é estranha por várias razões. Menos pelo ministro das Comunicações, um bolsonarista do centrão de quem se espera este tipo de absurdo. Nesse caso o que é incompreensível é a decisão do governo entregar um ministério chave para a difusão das ideias que influenciarão decisivamente o comportamento político da população a um inimigo ligado às piores práticas. A posição da AGU é ainda menos compreensível e mais grave, já que a indicação de Messias não foi fruto de negociação partidária, mas “escolha” do próprio governo.

Este caso mostra, de forma clara como o sol do meio-dia, aquilo que considero um dos mais graves erros tanto do PT quanto da “esquerda” brasileira pós Getúlio Vargas em geral: a decisão de não disputar as ideias dominantes que controlam a sociedade e seu comportamento. Todo comportamento humano é “determinado”, no sentido forte deste termo, por ideias, quer a gente saiba disso conscientemente ou não. Nosso comportamento prático não é determinado pelo DNA como os outros animais. E este é o aspecto mais importante não apenas da vida social em geral, mas precisamente da esfera política em particular. Toda dominação social precisa de ideias que as justifiquem, já que a violência tem sempre efeito temporário.

Influenciada muito especialmente por Karl Marx e por marxistas como Gramsci, a grande estratégia de resistência da esquerda e da luta contra a desigualdade no mundo todo sempre foi a crítica das ideologias dominantes que enganam as pessoas comuns. Para Gramsci, o aspecto central da vida política é a construção de uma nova hegemonia cultural baseada em ideias críticas da dominação fática. Não existe consciência política sem disputa das ideias.

O pior é que a direita mundial aprendeu a usar Gramsci, enquanto, no mesmo passo, a esquerda o esqueceu. Quando a partir dos revolucionários anos 1970 muitos bilionários conservadores buscavam reverter os consensos democráticos, eles encontraram precisamente na herança de Gramsci e de estudiosos de Gramsci o alimento para seus propósitos. O mais importante de todos talvez tenha sido Michel Joyce, que havia estudado Antonio Gramsci para aprender estratégias de produção de hegemonia cultural.

Com o dinheiro da família Olin, fabricante de armas e munições, que enriqueceu a partir de encomendas estatais e que havia sido obrigada a pagar pesadas multas por contaminar com mercúrio o rio Niágara, em Nova York, Joyce irá construir uma ampla estratégia de luta ideológica disfarçada, depois copiada por outros herdeiros. Conhecendo o poder das ideias quando elas se revestem de um verniz de “respeitabilidade”, a ideia de Joyce era conquistar terreno nas principais universidades americanas, as universidades da assim chamada Ivy League, as de melhor reputação, como Harvard, Yale, Cornell e Columbia. Essa abordagem foi chamada de “estratégia ponta de praia” (beachhead), em alusão à tática militar de conquistar um pedaço de terra inicial que possa servir de suporte para uma invasão maciça mais tarde.

Como se imaginava que as universidades fossem a fonte do “conhecimento de esquerda”, então dominante na esfera pública americana, a ideia era inicialmente cooptar professores já conhecidos como conservadores e reacionários e municiá-los com muito dinheiro para a propaganda reacionária dentro das próprias universidades. Isso daria a impressão de uma atividade acadêmica “espontânea”, não comandada de fora. Com o apoio das universidades e de seu prestígio, abria-se o caminho para a “criação de think tanks e “institutos de políticas públicas”, que, então, influenciavam diretamente o governo e a opinião pública.

A estratégia da “ponta de praia” significa que, para que possam ter sucesso na “guerra das ideias”, os interesses reacionários não podem se mostrar enquanto tais. Ao contrário, precisam parecer “ideias neutras”, que devem ser assimiladas pelo princípio da própria “pluralidade do debate público”. Ora, meus caros amigos leitores, a justificativa fajuta de defender a “pluralidade do debate público” é o âmago da defesa da AGU a continuar deixando a Jovem Pan chegar a milhões e milhões de brasileiros com a mensagem disruptiva, manipuladora e enganadora que hoje domina a emissora.

Todo o projeto mundial da extrema direita é montado a partir de uma cuidadosa “mudança do consenso democrático dominante”, daí o ataque as distinções mais básicas como a diferença entre mentira e verdade, ou entre bem e mal. Retirar as pré-condições deste consenso civilizatório é reinstaurar a violência e a barbárie. E este é o projeto da extrema direita para melhor explorar os imbecilizados com seu voto e anuência. É disso que se trata e por conta disso a bobagem e incompetência da AGU é imperdoável. A questão que se impõe é: afinal, o governo é só incapaz e burro ou ingênuo até a medula?

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