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Para abolir do repertório estatal brasileiro o desaparecimento forçado, é fundamental que a sociedade se empenhe
20/12/2024 | 08h38
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Por Guilherme Pimentel e Dejany Ferreira*

Em um dia que parecia comum, policiais abordam um homem e o levam. Ele nunca mais volta para casa. Sua família, então, inicia uma busca dolorosa, enfrentando a angústia da falta de respostas, a indiferença e a total ausência de providências para desvendar o paradeiro de seu ente querido.

Com o passar dos dias, os familiares são obrigados a tentar se conformar com o pior. A ausência do corpo rouba o direito ao luto, à despedida e também ao descanso. A esperança de encontrá-lo com vida torna-se um elemento de tortura cotidiana, enquanto a ideia de aceitar a morte passa a ser disparador de um sofrimento gigante misturado à culpa de desesperançar.

O desaparecimento de Rubens Paiva durante uma ditadura civil-empresarial-militar, tão bem retratado no filme “Ainda estou aqui”, se confunde com milhares de histórias da atual democracia brasileira.

Em 14 de julho de 2013, Amarildo foi preso por policiais da UPP da Rocinha e nunca mais voltou. Nesse caso, a investigação ocorreu e concluiu que ele foi torturado até a morte por policiais militares, que sumiram com seu corpo. Ainda que sem o direito ao velório, sua família encontrou resposta oficial, ao contrário de tantos outros casos de desaparecimentos ocasionados naquele mesmo ano.

A diferença entre o caso Amarildo e os demais desaparecidos das favelas foi a luta da família aliada às inúmeras manifestações da Rocinha, que encontrou eco nas ruas do Rio de Janeiro, ressoando para o mundo o grito “Cadê o Amarildo?”, lema das favelas nas jornadas de 2013.

Por sua vez, Dona Izildete, mãe de Fábio, ainda não conseguiu. Seu filho acompanhava uma amiga na volta de uma festa junina em 2003, mas seu destino foi atravessado por uma viatura da PM. Abordado sem ter cometido crime algum, foi levado pelos policiais sem mandado judicial. A amiga, então, o viu pela última vez.

Dona Izildete foi em busca do filho já no dia seguinte. Reclamou no batalhão, registrou ocorrência na delegacia, compareceu à então Corregedoria Geral Unificada, acionou a Secretaria de Estado de Segurança Pública, denunciou ao Ministério Público. Com auxílio da testemunha, chegou a produção de informações que levaram ao reconhecimento de um dos policiais responsáveis ​​pela abordagem. Mas, além de não ver evolução do caso, passou a ser ameaçada por agentes públicos.

Diante da inoperância do Estado brasileiro, buscou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de onde espera uma resposta enquanto cuida sozinha de seu outro filho, com deficiência intelectual, e do neto.

Dona Izildete representa milhões de brasileiros para quem as investigações criminais não funcionam, mesmo na assim chamada democracia. Apesar do peso da luta, continua firme há mais de duas décadas, com sua pastinha embaixo do braço, levando os papéis de seu caso por onde quer que vá. Dona Izildete ainda está aqui.

Em 2021, o Brasil registrou 59.024 casos de desaparecimentos gerais, segundo o Relatório Estatístico Anual sobre Pessoas Desaparecidas do Ministério da Justiça. Esse número inclui uma parcela de desaparecimentos forçados, frequentemente relacionados à violência do Estado, milícias ou facções criminosas, cuja ocorrência ainda carece de tipificação formal.

A falta de investigações rápidas e eficazes dificulta a distinção entre diferentes tipos de desaparecimentos, comprometendo políticas públicas de prevenção e responsabilização. Compromete também o próprio processo de democratização brasileira, uma vez que não são revelados elementos importantes para compreendermos o tamanho do envolvimento de agentes do próprio Estado nesses desaparecimentos.

Se quisermos realmente abolir do repertório estatal brasileiro o desaparecimento forçado, a tortura e o assassinato, é fundamental que a sociedade se empenhe na jornada de Dona Izildete e na das milhares de famílias que sofrem com esse passado que insiste em ser tão presente na história do nosso país.

 

*Guilherme Pimentel e Dejany Ferreira são coordenadores técnicos da RAAVE — Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado

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