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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

Alafiou! O abraço ancestral do tambor do carnaval

A palavra foi a estrela das ruas e avenidas
15/02/2024 | 05h00

Desfile da escola de samba Salgueiro, do Grupo Especial do carnaval carioca

Aláfia é uma expressão que significa confirmação, e a palavra mais que confirmou a sua realeza. Alafiou! A palavra foi a grande senhora do Carnaval 2024, este evento tão definidor do que nós somos e que não foi inventado por nós, mas se temos alguma admiração do mundo devemos muito a ele.

Uma festa cheia de gramáticas, letras, cartas, mensagens explícitas e veladas faladas em cada percussão ou corda, enredo ou no corpo vestido da fantasia reveladora do que somos e pensamos.

O carnaval que abraça até quem dele se afasta, pois garante algum descanso, algum alívio da rotina massacrante e aniquiladora. Ele, que promove abraços nos vivos e em quem já se foi, mas está aqui no mundo mágico e invisível que nos constitui.

Não importa muito a colocação final das escolas. O que interessa aqui é este espaço tão popular se servindo, com toda propriedade e alegria, da produção literária. Este ano, o carnaval do Rio mergulhou na literatura que por longos séculos foi privilégio de apenas alguns.

Tantas obras inspiradoras que apelidei a folia de BiblioteCarná 2024 e ela nos deu espetáculos magníficos como o do Acadêmicos do Salgueiro, que bebeu no “A queda do céu”, do indígena yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Alberts, que traz toda a mitologia do povo da floresta. A trilha dos povos indígenas também seguida pela Grande Rio, que usou o excelente “Meu destino é ser onça”, de Alberto Mussa, escola que deu o nome de outro livro, “O som do rugido da Onça”, de Micheline Vernusky, para o coração da escola, a bateria.

O almanaque medieval espanhol, Lunário Perpétuo, traduzido para o português nos anos 1700 deu caminho para a escola Porto da Pedra; o “Tempo de Caju”, de Socorro Acioli, para a Mocidade Independente de Padre Miguel; e o cordel “O testamento da cigana Esmeralda”, para a Imperatriz Leopoldinense.

O já clássico “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, tocou cordas muito doloridas do coração nacional. O livro ficcionaliza a relação da lendária Luiza Mahin e de seu filho Luís Gama, grande advogado abolicionista, afastado dela porque foi vendido como escravizado pelo próprio pai. Uma corrida à procura do livro fez que esgotasse nas prateleiras físicas e virtuais. Não dá para não se emocionar com este efeito.

A Portela, grande matriarca de todas as escolas de samba, pioneiríssima e grande campeã da história dos carnavais, trouxe uma visão comovente desta história. No livro, Luiza conta sua vida para um filho que jamais consegue reencontrar em vida, na escola de samba, é ele quem lhe diz que viveu e venceu. E para as lágrimas de muitos que leram o livro, o samba promoveu o abraço que nunca aconteceu. O samba e sua capacidade de subverter o tempo, curou uma saudade e trouxe um bálsamo para uma ferida eterna de centenas de milhares de mães que também perderam seus filhos e filhas para a violência, a injustiça e o sistema cruel.

A palavra que permeou carnaval deste ano trouxe pregação sobre o Apocalipse e proselitismo religioso combatido com ironia e o humor que, já diria Paulo Gustavo, é revolucionário. Teve protesto contra ala de escola de samba que criticava a atuação da polícia. Teve ainda reclamação de estrela da música contra o desejo autoritário de censura à sua voz por parte do público, e ídolo da música arriando oferenda na rua para a entidade da comunicação, da fala, dos caminhos abertos e dos espaços públicos e, com o seu gesto, se conectando com a energia da qual se nutre.

O escritor Mário de Andrade deu o título de campeã do carnaval paulista à Mocidade Alegre e, curiosamente, a Viradouro, campeã do Rio de Janeiro, cantou a serpente Dan e o Benin e, — vejam a magia! — lugar de origem das personagens do “Um defeito de cor”. Como diz o samba da escola de campeã, “Ê, alafiou!”.

O carnaval, como sempre, foi Brasil e o Brasil foi carnaval. Tudo é político numa festa em que tudo é texto. No fim, os batuques que embalam o corpo nada mais são que livros, que contam uma história vinda de tempos imemoriais e que continuará. Seguirá para muito além do tempo em que nós, os contemporâneos, seremos os ancestrais dos que pela eternidade virão.

 

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