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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

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A ameaça Michelle Bolsonaro: Teologia do Domínio – I

A distopia fundamentalista da Michelle será aqui e agora?
22/05/2024 | 07h08

A ameaça Michelle Bolsonaro

No dia 25 de fevereiro, na avenida Paulista, Michelle Bolsonaro surpreendeu a muitos ao explicitar sem precaução alguma o projeto de poder que anima líderes religiosos oportunistas que se especializaram na manipulação da fé sincera de dezenas de milhões de brasileiros.

Vale a pena recordar a confissão de Michelle, autêntico rito de passagem na cena política brasileira contemporânea.

A transcrição do momento decisivo na fala da ex-primeira dama evoca “O conto da Aia”, de Margaret Atwood, como cenário provável da distopia fundamentalista anunciada à luz do dia — e com trilha sonora preparada pelo trio elétrico que mescla tribuna e púlpito, discurso político e louvor evangélico.

Eis a revelação:

“Por um bom tempo nós fomos negligentes, sim, ao ponto de falarmos que não poderiam misturar política e religião. E o Mal tomou. O Mal ocupou o espaço. Chegou o momento agora da libertação. ‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’. Foi o versículo que ele usou em toda a campanha e eu creio que isso foi gerado no mundo espiritual. Porque eu creio num Deus vivo, um Deus todo-poderoso que é capaz de restaurar, de curar a nossa nação. Não desistam, mulheres, homens, jovens, crianças: não desistam do nosso país. Continuem orando, continuem clamando porque eu sei que nosso Deus, do alto (dos) céus, ele irá nos conceder o socorro.”

A citação é longa, porém incontornável, pois a desinibição do propósito chega a desorientar. Será que entendemos corretamente? É possível que tenhamos escutado nada menos do que a defesa do governo da nação com base nos princípios da religião professada por Michelle Bolsonaro?

Avancemos passo a passo.

(O caminho será árduo: este é o primeiro artigo de uma longa série destinada à Teologia do Domínio. Conto com a sua companhia?)

Em primeiro lugar, a fala flerta de forma brejeira com a inconstitucionalidade em estado de dicionário. O artigo 19 da Constituição Federal de 1988 é cristalino:

“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (…).

Consagra-se assim o caráter laico do Estado brasileiro. É expressamente proibido privilegiar uma religião específica em detrimento de outras expressões. Desse modo, o artigo 19 dialoga com o artigo 5. Após a confirmação do princípio fundador da ideia de República, há um parágrafo que se destaca pelo emprego cuidadoso de um plural inclusivo:

Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos  estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (…)”.

Para bom entendedor, trecho de artigo basta. O Estado é laico não porque desfavoreça a crença de seus cidadãos, mas, pelo contrário, para garantir a plena expressão da fé, independentemente deste ou daquele credo, desta ou daquela religião.

Na chave de leitura da ex-primeira dama o pressuposto é corrompido: em sua visão estreita, inspirada na importação do nacionalismo cristão de origem norte-americana, só se admite uma religião. Nesse caso, claro está, a “verdadeira fé” confunde-se com a que ela professa.

(Tudo se passa como se Michelle Bolsonaro fosse leitora atenta de Gary North. Espere um pouco e na próxima coluna desenvolvo o elo. Não me queira mal).

Por isso, em sua pregação, como um corolário à crítica ao divórcio entre política e religião, Michelle trouxe à baila um problema delicado: “E o Mal tomou”. Difícil imaginar uma associação mais fundamentalista, uma ameaça mais grave contra a essência da democracia, qual seja, o reconhecimento da dignidade plena do outro.

O Mal

Não exagero.

O Mal é problema filosófico e metafísico de máxima complexidade; tema fascinante, onipresente até, em tradições literárias as mais diversas.

Se o Mal não somente existe, como também atua em todas as esferas da vida, como entender “o silêncio de Deus”? Título, aliás, do romance-só-lâmina de Shūsaku Endō. Lançado em 1966, “O silêncio de Deus” ficcionaliza eventos históricos ocorridos no Japão no século 17.

Após um princípio inesperadamente favorável à evangelização levada a cabo por jesuítas, as autoridades decidiram proibir a difusão e a prática do cristianismo. O inquisidor Inoue recorreu a expediente tão certeiro quanto perverso, concentrando a repressão no esforço de levar os padres à apostasia.

O raciocínio acertava brutalmente no alvo: se o emissário do Deus cristão, em lugar de viver o papel apostólico do mártir, testemunhasse a abjuração de sua fé para preservar a própria pele, os fiéis japoneses teriam poucas razões para suportar sofrimentos e torturas. Diante de um padre apóstata, que força teria a leitura do “Livro de Jó”?

Na trama, o jesuíta português Sebastião Rodrigues conjuga o doloroso verbo em sua carne: por piedade, decide esquecer a Segunda Carta aos Tessalonicences [1] e se torna apóstata para interromper o duro castigo que afligia os convertidos. A presença do Mal, seu aparente triunfo, é a medida do livro: como entender o silêncio de Deus numa situação limítrofe?

No Antigo Testamento, provavelmente não haja momento mais dramático do que o primeiro capítulo do “Livro de Jó”. Os primeiros cinco versículos compõem o “Prólogo na terra”, apresentando a imagem perfeita de um homem,

“(…) justo e honrado, religioso e apartado do mal. Tinha sete filhos e três filhas. Tinha sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas jumentas e numerosos servos. Era o mais rico entre os homens do Oriente”. [2]

Jó era o seu nome, tornado metonímia de constância e fidelidade diante de provações que para todos nós seriam insuportáveis. Como a metamorfose teve lugar? Os versículos seguintes, de 6 a 12, encenam um dos mais desconcertantes encontros de toda a Bíblia. Estamos no “Prólogo no céu”:

“Certo dia os anjos foram e se apresentaram ao Senhor, entre eles chegou também Satã. (…)” Deus menciona com orgulho um servo: “Na terra não há outro como ele: é homem justo e honrado, religioso e apartado do mal”.[ 3]

Satã não desperdiçou a deixa e aproveita para propor uma aposta temerária: pensando bem, qual a dificuldade de manter-se “apartado do mal” em meio à prosperidade e à fartura? Por que não submeter o servo à prova dos nove? Deus é desafiado com astúcia:

“– E tu crês que sua religião é desinteressada? Se tu mesmo o cercaste e protegeste, bem como seu lar e tudo o que é seu! Abençoaste seus trabalhos, e seus rebanhos se alargam pelo país. Mas toca-o, danifica suas posses, e aposto que te amaldiçoará de frente.

O Senhor lhe disse:

– Faz o que quiseres com suas coisas, mas não toques nele.

E Satã foi embora.” [4]

Começam as terríveis provações de Jó. [5] O episódio é tão impactante que foi retomado inúmeras vezes. Nenhuma com a força do texto de Goethe em Fausto.

A própria estrutura da obra evoca o Antigo Testamento: após a “Dedicatória”, segue-se o “Prelúdio no Teatro”, que reúne um Diretor, um Poeta Dramático e um Ator Cômico, envolvidos com uma pergunta espinhosa: “A nossa empresa que futuro tem pela frente?” [6] Surge então o “Prelúdio no Céu”, no qual Deus parece encantado com um homem em particular:

“O Senhor:

Conheces Fausto?

Mefistóteles:

– O Doutor?

O Senhor:

– Meu criado!”

Deixa dada é deixa para ser aproveitada de imediato:

 

“Mefistóteles:

Vai uma aposta? Eu Vos digo, em verdade,

Que o haveis de perder! Basta eu poder

Conduzi-lo bem à minha vontade.

 

O Senhor:

Enquanto na Terra ele viver

Não te impeço de o tentares convencer.

A porfia no Homem segue caminhos tortos.”

 

Começam as tentações do vulnerável Doutor Fausto!

Política

Poderia multiplicar exemplos, mencionar Fiódor Dostoiévski, cuja obra é uma reflexão obsessiva sobre o Mal, mas você já me entendeu: há domínios que demandam essa reflexão. No entanto, na esfera da política, o problema do Mal simplesmente não se coloca; no fundo, não faz sentido.

Explico.

Uma vez identificado, o Mal (Absoluto) deve ser suprimido pela potência do seu oposto, o (Supremo) Bem. Não há aqui espaço para convivência ou qualquer tipo de negociação.

No entanto, sem esses gestos, a política é inviável, pois o bom governo da pólis exige que se façam concessões, de modo a forjar mediações possíveis entre adversários ideológicos, nunca inimigos fidagais.

A “libertação” anunciada por Michelle Bolsonaro implica tanto a subordinação da política à religião quanto a eliminação de tudo que não seja espelho. Preste-se muita atenção no vocabulário em tela: o lema da campanha presidencial de seu marido (muito em breve, essa será a ordem das apresentações do casal) “foi gerado no mundo espiritual” (!).

Aceitemos a interpretação: como então aceitar a derrota no pleito? Nessa lógica, o ungido só pode ser vencido por meio da fraude, ou seja, da enfermidade do corpo político. Daí, cabe a Deus “curar a nação”.

Sejamos objetivos: essa declaração significa defender o expurgo de todos os que não professem a sua religião. Em consequência, a ação política supõe transformar os espaços públicos em locais de culto; anomalia que muitos parlamentares da Frente Evangélica insistem em tornar fato corriqueiro no Congresso.

Desse modo, os cidadãos poderão agir “politicamente”, seguindo o apelo de Michelle Bolsonaro: “continuem orando, continuem clamando”. E ninguém será esquecido no projeto de poder do nacionalismo cristão: “mulheres, homens, jovens, crianças”.

A distopia fundamentalista da Michelle será aqui e agora?

Depende: seremos capazes de decifrar a Esfinge antes que ela devore a incerta democracia brasileira?

(Encontro marcado na próxima semana? Mostrarei como o discurso de Michelle Bolsonaro retoma literalmente a tática dos dois passos para chegar ao poder político, tal como foi definida em ensaio-chave de Gary North, “The Intellectual Schizophrenia of the New Christian Right”.)

[1] “Que ninguém vos engane de nenhum modo: primeiro deve acontecer a apostasia e deve manifestar-se o Homem sem lei, o destinado à perdição, o Rival que se ergue contra tudo o que se chama Deus ou é objeto de culto, até sentar-se no templo de Deus, proclamando Deus.” Bíblia do Peregrino. Luís Alonso Schökel (organização e notas). Segunda Carta aos Tessalonicences, 2: 3-4. São Paulo: Editora Paulus, 2a edição, 2006, p. 2.845. Citarei sempre essa edição.
[2] Jó, 1: 1-3. Op. cit., p. 1062.
[3] Na primeira citação, Jó 1: 6; na segunda passagem, Jó 1: 8. Op. cit., p. 1062-1063 e p. 1063.
[4] Jó, 1: 9-12. Op. cit., p. 1063.
[5] Claro, no final, após comprovar sua incomum fortaleza espiritual, “o Senhor abençoou Jó, mais ainda do que no princípio (…)”. Jó 42: 12. Op. cit., p. 1147.
[6] Johann Wolfgang von Goethe. Fausto. João Barrento (tradução, introdução e glossário). Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2023, p. 39.

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