Por Amanda Prado
É Natal, uma das principais datas comemorativas do calendário ocidental, período marcado por celebrações entre os dias 24 e 25 de dezembro. Na cultura cristã, a festa relembra o nascimento de Jesus Cristo em Belém, atual Cisjordânia, território palestino ocupado por Israel. A palavra Natal tem origem no idioma latino e faz referência à palavra “natalis”, que significa “nascer”.
É difícil estabelecer a origem exata do Natal devido à falta de fontes documentais precisas. A teoria mais aceita é a de que o Natal surgiu em festas pagãs da Roma antiga, em meados de dezembro. Enquanto festa cristã, entende-se que a cerimônia surgiu em algum momento entre o século II d.C. e IV d.C. Não se sabia exatamente o dia do nascimento de Cristo.
As celebrações romanas tinham relação direta com o solstício de inverno (no caso do hemisfério norte), um fenômeno astronômico caracterizado por iniciar a nova estação. Nesse período, costumava-se realizar grandes festas para atrair fertilidade e celebrar o “renascimento” do sol, já que o solstício de inverno é o dia de sol mais curto do ano. Vários povos festejavam essa época. Ao longo do tempo, o culto do sol passou a ser associado ao nascimento de Jesus de Nazaré – ou seja, “a luz do mundo”.
Em terras brasileiras, o sincretismo religioso associa Jesus Cristo a Oxalá. Nos terreiros de Umbanda, por exemplo, há imagens de Jesus e de Nossa Senhora nos congás, e também aparece o nome de Jesus em vários pontos cantados. Na cultura iorubá, Oxalá é uma das divindades mais antigas, Orixá responsável pela vida e pela criação dos seres humanos. O poder de Oxalá está simbolizado em suas vestes brancas, representando seu alto nível de moralidade e ética.
No Brasil, um território tão vasto e plural, o Natal é parte de celebrações sociais e culturais, indo muito além do sentido religioso. Nesta reportagem, o ICL Notícias ouviu lideranças do Candomblé, da Umbanda, do Catolicismo e de Igrejas Evangélicas para uma reflexão sobre o tema. Embora existam realidades semelhantes, as práticas são individuais de cada terreiro, de cada igreja, de cada templo. Não é possível generalizar. Em linhas gerais, a mensagem é de união e fortalecimento, na fé de Jesus Cristo e de Oxalá, tudo com respeito.
A relação do Natal com o Candomblé
Em entrevista, o Babalawô Ivanir dos Santos, pesquisador e coordenador de área de pesquisa no Laboratório de História das Experiências Religiosas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LHER/UFRJ) e também colunista do ICL Notícias, falou sobre o Natal na perspectiva da sua religião.
“No Candomblé, na visão iorubá, de origem africana, a ritualística não tem a ver com o Cristianismo. Orixá é força da natureza. Sem natureza não tem Orixá. Sem folha não tem Orixá. Isso tudo é anterior a Jesus Cristo. Se fôssemos seguir o calendário iorubá, por exemplo, o ano novo nasce no primeiro domingo de junho. Mas a realidade é que estamos no Brasil, e naturalmente vivenciamos um candomblé construído no nosso território. Uma coisa é a tradição milenar que cultuamos: sagrado é a terra, a água, o ar e o fogo. Isso não tem sentido cristão. Mas precisamos lembrar que nos séculos 18 e 19, aqui no nosso país, a Igreja era o Estado e a data era feriado. Essa é uma representação de poder porque se trata de uma questão colonial. Nesse momento, os escravizados faziam suas reverências. Uma coisa dialoga com a outra. Era a licença que se tinha para dizer que Iansã é Santa Bárbara, mas Iansã é muito anterior. Uma coisa não tem a ver com a outra”, explica Ivanir.
Segundo o babalawô, levando em conta que o Candomblé é uma tradição afro-brasileira, a religião se configura em diálogo com a Igreja Católica, por isso o Natal é comemorado como uma forma de confraternização entre as pessoas, mas sem significado dentro do culto religioso.
“Temos nossas várias festas, como a festa do Boi de Oxóssi, a Fogueira de Xangô, o Balaio de Oxum, de Iemanjá, etc… mas o Natal em si remete mais a uma reunião familiar. Somos brasileiros, as famílias são muito plurais, isso está na nossa cultura, dizemos ‘Feliz Natal’ como uma saudação normal. É um momento de felicidade e solidariedade, mas apenas pela lógica cultural. Quando vira o ano, para ritualizar a passagem, fazemos o que chamamos de Osé da casa, que significa lavar a nossa casa, lavar o nosso terreiro para começar o ano bem”.
O Natal na visão dos umbandistas
Na Bahia, na cidade de Juazeiro, Tata Edson do Congá do Seu Zé explica que sua prática se baseia nas tradições africanas, especialmente na tradição bantu – povos que chegaram ao Brasil entre os séculos 16 e 17. Conforme a filosofia bantu, os ciclos são extremamente importantes para a vida. Há o entendimento de que é preciso crescer, construir comunidade, realizar objetivos pessoais em conexão com o coletivo e estar em harmonia com os ancestrais. “Não seguimos o calendário cristão e não comemoramos o Natal. No entanto, no final do ano, realizamos uma série de ritos porque entendemos que a virada de um ano para o outro é virada de um ciclo de vida”, diz.
“Para que o novo ciclo inicie de maneira positiva, com todo mudo bem de saúde, forte espiritualmente e em harmonia com os ancestrais, a gente cumpre um rito de fim de ano. Nos reunimos para rever o caminho percorrido até aqui e ter algum vislumbre do que precisa mudar. Realizamos consultas com os filhos da casa, limpezas espirituais, descarrego. Depois vem a conversa geral, com Seu Zé Pelintra, que fala com todos sobre o que precisa melhorar, como foi o ano, como cada um precisa trabalhar para se fortalecer e enfrentar os desafios. Depois do período de preceito, temos a nossa confraternização. E encerramos com o banho da virada, que é o banho de folhas que a gente prepara pro último dia do ano e pra virada também”, diz.
Além desses rituais, Tata Edson explica que, segundo a tradição africana bantu, o ano precisa fechar com o trabalho de Exus, Pombagiras, Pretos e Pretas Velhas. “Eles encerram os ciclos na nossa casa. Exus e Pombagiras fecham demandas de conflitos, de caminhos e de questões materiais; Pretos Velhos e Pretas Velhas fecham ciclos de demandas espirituais e afetivas.” No caso do início do ano, 2025 vai começar com a licença dos caboclos, conhecidos como “ancestrais da terra”. “Antes de qualquer coisa, os primeiros trabalhos do ano no nosso terreiro de Umbanda são em homenagem aos caboclos”, diz o Tata.
Ou seja, os rituais estão mais relacionados ao fim e ao início do ano, à transição, não ao dia do Natal em si. “A nossa sociedade vai parando, vai entrando em período de recesso, é feriado… então nos juntamos a esse calendário porque as pessoas vivem nessa lógica mesmo, precisam descansar, têm folga do trabalho… mas não nos apegamos ao sentido religioso da data. O que fazemos em seguida são oferendas a Oxóssi — para que o ano seja farto e próspero.”
No Rio de Janeiro, Paulo Júnior, Babalorixá do T.E.U. Choupana de Oxóssi, descreve como são feitos os trabalhos no terreiro nessa época do ano. “A nossa Umbanda tem Jesus como guia e o seu evangelho como instrumento de formação de caráter. Nesse momento, religiões cristãs festejam o Natal, a data da encarnação de Jesus. O período culmina também com o final de ano e o réveillon. Temos um recesso, mas não por causa do Natal, e sim pelo período de descanso e festividades. O nosso terreiro trabalha o ano inteiro com consultas, passes, projetos de assistência à comunidade, solidariedade aos irmãos em situação de vulnerabilidade… mas nesse período de fim de ano a gente faz uma pausa para os médiuns organizarem suas vidas, festejarem com suas famílias, descansarmos um pouquinho”, diz.
O terreiro ritualiza esse período com a última gira do ano. “É um momento de reflexão, de comunhão, de amizade e de amor, como é Jesus. É um momento de confraternização. Dentro da nossa liturgia, a gente faz a canjica de Oxalá ou, como alternativa à canjica, temos também o pão, o peixe e o vinho, simbolizando a Santa Ceia, que está no evangelho. São alimentos que fortalecem a nossa comunidade, junto das reflexões, com as palavras dentro do terreiro e um sentimento de muito amor”, relata o babalorixá.
“O encerramento é uma homenagem ao governador do nosso planeta, o Cristo Jesus, reavivando os seus ensinamentos, refletindo sobre como a gente pode por em prática tudo isso. É preciso destacar que, dentro da nossa fé umbandista, nós entendemos Jesus como um espírito de enorme evolução”, explica o babalorixá. E acrescenta que, mesmo para quem não tem religião, a história de Jesus é um grande manual de fraternidade. “Quando a gente diz que Jesus é a salvação, é a sua palavra que é a salvação, é o norte para todos nós encarnados aqui nessa terra. Porque a grande mensagem que ele deixou é de amizade, de perdão. A mensagem de que a única lei que deveria reger o nosso planeta é a lei do amor. Devemos caminhar para isso”.
O período do Natal nas igrejas evangélicas
Em Maceió, no estado de Alagoas, a pastora Odja Barros é a liderança à frente da Igreja Batista do Pinheiro há mais de 30 anos. Segundo ela, o evento natalino, assim como a Páscoa, é similar em todas as correntes cristãs. Cada igreja celebra de maneiras próprias, mas não há muito como divergir do sentido principal. “Nesse momento em que se celebra o Natal, dentro da tradição chamada cristã, há um encontro. A mensagem do Natal atravessa todos os fieis do Cristianismo. Natal é o momento em que Deus abraça a humanidade, se faz gente, criança, chega na história, se humaniza”, relata.
“Falando em nome da Igreja Batista ou dos protestantes e evangélicos, compreendemos um Deus que encarna numa criança vulnerabilizada na periferia do mundo. É um Natal vivido pelas mulheres através de uma jovem também periférica de Nazaré da Galileia, evocando a escolha de Deus de nascer no corpo de uma mulher, numa cultura muito pior do que a nossa. Esse corpo feminino gesta o Salvador por uma visitação divina. Isso é muito ainda para a nossa cultura, imagine para aquela época. Deus não nasceu de um imperador ou um rei. Ele nasceu no seio dos humanos mais massacrados pelas estruturas de poder e carrega uma mensagem não só política — mas de fé transformadora pra esse mundo”.
A igreja que Odja lidera se junta ecumenicamente no Natal para celebrar a data com protestantes e católicos. As cerimônias começam quatro semanas antes do Natal, no período chamado de “advento” (do primeiro domingo de novembro ao último), uma preparação ritualística que significa a espera da chegada da criança que vai nascer. Os fiéis se reúnem para cultos, leituras bíblicas e meditações, revivendo a cena do Natal na narrativa dos evangelhos.
“Isso é muito importante para nós. Buscamos não deixar jamais de viver a mensagem principal do Natal: esperança em um tempo difícil. Está na Bíblia, em Isaías 9:2: ‘o povo que andava em trevas viu uma grande luz’. A grande luz é a chegada de Jesus – iluminadora do mundo. Quem de nós não precisa esperançar a alma e o coração sempre? O Natal nos traz de novo essa luz que volta a brilhar dentro da gente, mesmo nas coisas mais simples. Ninguém sabia que aquela criança pobre se tornaria o Cristo. Precisamos diminuir o valor que damos ao consumo, aos presentes, e olhar mais pra mensagem que sinaliza: olha, tá escuro, tá nublado, tá difícil, mas o Natal nos lembra que há luz”, diz Odja.
No Rio de Janeiro, o pastor Valdemar Figueredo e também colunista do ICL Notícias destaca que as igrejas evangélicas têm múltiplas expressões. Em sua pregação de Natal em duas Igrejas Batistas diferentes, ele ressaltou a mensagem de que a vida vale mais do que as coisas. “Seguindo o exemplo de Jesus, devemos usar coisas e amar pessoas — não o contrário”, diz. O pastor citou referências ao despojamento de Jesus com exemplos de passagens da Bíblia — criando uma reflexão sobre um espírito de Natal que possa ir além de dezembro e do discurso religioso.
“O que foi emprestado a Jesus? A manjedoura em que Maria e José colocaram o bebê foi emprestada (Lucas 2.7). O pote para tirar água do fundo do poço para o sedento andarilho foi emprestado pela mulher samaritana (João 4.11). Os pães e peixes que multiplicou para alimentar a multidão foram emprestados por um menino (João 6.9). O barco que lhe serviu de plataforma para ensinar as multidões e fazer pequenas travessias foi emprestado pelo pescador Simão (Lucas 5.3).
Na sua entrada triunfal em Jerusalém, montava num jumentinho emprestado por um amigo oculto (Lucas 19.30, 31). O cenáculo onde comeu a última ceia de Páscoa com os seus amigos foi emprestado, pois ele não era proprietário, não tinha onde reclinar a cabeça (Lucas 22.10-12). O túmulo onde foi sepultado foi emprestado por José de Arimatéia (Lucas 23.50-53). Quando nasceu, não havia lugar para sua família na hospedaria. Maria o enfaixou, provavelmente, com panos improvisados e não mantas do enxoval de bebê (Lucas 2.7).
Quando morreu, o seu corpo foi tirado da cruz e envolto num lençol de linho. Na verdade, o último empréstimo de José de Arimatéia (Lucas 23.50-53). Maria Madalena e outras amigas foram ao túmulo para perfumar o lugar com aromas que haviam preparado. Perplexas, se deram conta de que a pedra que tampava o túmulo fora removida e não havia corpo morto para perfumar. Nada viram senão o lençol de linho (Lucas 24.1-12)”.
Valdemar busca mostrar que, quando nasceu, Jesus não tinha berço e quando morreu não tinha onde cair morto. “Que em 2025 desfrutemos experiências com o divino ao assumirmos a coragem de ser humanos, demasiadamente humanos. Que busquemos um fiapo dessa esperança que nasce num tempo de enorme fastio em que pessoas são coisificadas e patrimônios são cultuados”, finalizou.
O Natal para os católicos
Frei David dos Santos, franciscano, fundador da rede de cursinhos Educafro, conversou com a nossa equipe sobre a representação da data. “O Natal representa o ponto mais alto do projeto de Deus através de Jesus. Ele carrega uma potência de ensinamentos para quem quer se sentir na missão de fazer o melhor para o mundo. É essa potente energia, que brotou em Luther King, Irmã Dulce e tantas outras pessoas extraordinárias, que passaram pelas mesmas realidades que passamos e tiraram o máximo de si para fazer acontecer o natal para muita gente”, descreve.
Para ele, a Igreja Católica está em crise. “O Natal se reduziu só a um ritual bonito, correndo o perigo de ser uma ofensa ao menino Deus do presépio. A igreja não atrai mais as crianças e a juventude. Já perdeu, há um bom tempo, o povo afro-brasileiro, por insistir em fazer e definir uma missa eurocêntrica, marginalizando culturas indígenas e afro-brasileiras”, diz. “O Natal é a concretização do máximo que a compreensão de doação existencial pelo outro pode chegar. Pena que a perversidade do capitalismo, para ganhar dinheiro, quebrou com o espírito do Natal. Precisamos criar, urgente, um capitalismo humano, um novo sistema mundial onde o social seja o centro ou iremos deixar a força perversa do capital destruir a humanidade”, finaliza.
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