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Argentina entre o delírio demolidor da extrema-direita e o drama progressista do possível

Com um Milei caótico, a ponto de explodir, coube ao peronismo se erguer como muro de contenção à barbárie
17/11/2023 | 12h00

Por Lucas Rocha

A Argentina encara neste domingo (19) o segundo turno de uma eleição presidencial imprevisível. Com um roteiro cheio de reviravoltas, personagens completamente distintos e um país dividido entre a desilusão e a crença — ainda que frágil — de que essa agitada democracia argentina é capaz de caminhar na direção da justiça social, não dá para cravar um resultado.

Contra todos os prognósticos prévios, a disputa entre Sergio Massa e Javier Milei no segundo turno das  eleições da Argentina será altamente acirrada. Massa, colocado desde o início do processo eleitoral como virtual derrotado por ser ministro da Economia do trágico governo Alberto Fernández, foi o mais votado no primeiro turno e se postula como um candidato moderado e bem preparado diante de um insensato Javier Milei.

As discrepâncias, que ficaram ainda mais evidentes após Massa dar um baile em Milei no debate do segundo turno, no dia 12, são sentidas pelo eleitorado. De acordo com pesquisa divulgada pela Celag no dia 10 de novembro, 46,2% dos eleitores enxergam Massa como o candidato mais preparado para ser presidente, 53% o veem com mais capacidade de diálogo e 47,9% como o mais próximo do cidadão comum. Por outro lado, Milei é apontado 49,4% como quem mais provoca medo, ainda que seja visto por 45,9% como o mais capaz de resolver os problemas econômicos. Nesse levantamento, Massa seria eleito com 50,8% dos votos válidos, 1,2 pontos à frente de Milei, praticamente o mesmo resultado de Lula contra Jair Bolsonaro em 2022.

Sergio Massa oferece ao eleitorado uma Argentina do possível, assustadoramente concreta. Com a hiperinflação batendo à porta, o ministro da Economia se apresenta como voz do bom senso e convoca o eleitorado a construir soluções mesmo diante de uma extrema dificuldade. Construir alternativas dentro de uma combalida democracia liberal latino-americana em um momento de crise do capitalismo global onde um neoliberalismo autoritário mostra as garras com o apoio das elites econômicas.

É a vida como ela é. E, nesse roteiro, Massa virou até sex symbol, aproximando-se de uma narrativa rodrigueana, ao entregar flores a uma eleitora de 104 anos que teve que pedir para ser reintegrada no padrão eleitoral após ser excluída automaticamente. O peronismo consegue ser sexy sem ser revolucionário.

Já Javier Milei se projeta como uma bomba que vai dinamitar a democracia argentina. O candidato de extrema-direita já classificou a justiça social como “aberração”, atacou o Papa Francisco, defendeu a ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher — algoz da Argentina na guerra da Malvinas —, normalizou a crianção de um “livre mercado” para a venda de órgãos e de bebês, minimiza os traumas da ditadura do terrorismo de Estado e traz a polêmica proposta de dolarizar de vez a economia com o fim do Banco Central.

Em um vídeo produzido durante a pandemia da Covid-19 que voltou a tona nas últimas semanas, o “libertário” aparece dando marretadas em uma maquete do Banco Central, transformando simbolicamente esse órgão em pó, para o furor de sua horda de apoiadores. Em outra gravação, o candidato aparece arrancando os nomes dos ministérios de um quadro em sua “missão” de fazer um corte de gastos na marra. Essas cenas retratam esse desejo dinamitador que Milei encarna, uma pulsão de destruição que é inclusive mais exacerbada que a que move Jair Bolsonaro.

Com um Milei caótico, a ponto de explodir, coube ao peronismo se erguer como muro de contenção à barbárie.

Esse cenário não é novo e traz algo de irônico nessa onda da extrema-direita latinoamericana. Coube ao chamado campo progressista o papel de conservar as estruturas e defender uma democracia liberal que historicamente serve aos interesses do mercado. A utopia progressista predominante hoje é conservadora. O horizonte já não é mais Cuba ou o Chile de Salvador Allende, mas o próprio sistema vigente.

Talvez por isso a juventude argentina tenha embarcado de forma tão voraz na candidatura de Milei.

Massa não vai fazer revolução — e jamais se propôs a isso. Milei também não vai, mas flerta com esse processo de demolição das estruturas que, ao mesmo tempo, aterroriza e seduz. Aterroriza quem enxerga nele um projeto de autocrata que entregará de vez a Argentina para o mercado financeiro e aprofundará desigualdades e seduz quem acredita em uma mudança profunda da forma que for — e que tem tudo para ser um salto no escuro direto para um buraco sem fundo.

O trunfo que Massa tem é justamente um elemento bastante argentino — que Fernando Haddad não tinha no Brasil ao defender “a democracia” enquanto gerava revolta em Mano Brown. O trunfo é a organização popular do peronismo.

E é mais que isso. O peronismo é tão complexo que oferece um encantamento utópico e mobiliza paixões dentro de um sistema combalido. A paixão por uma Argentina que segue numa luta romântica por justiça social, que garanta direitos à classe trabalhadora mesmo com as limitações de um país de Terceiro Mundo. A paixão de um movimento que insiste num sonho de Pátria Grande, tão impossível quanto a retomada das Ilhas Malvinas no atual contexto. E isso talvez só se constitua pelo fato de o peronismo se amparar na organização de massas para se consolidar como doutrina política. E talvez essa seja a faísca revolucionária nesse movimento tão plural e controverso. Um peronismo que abraçou o neoliberalismo com Carlos Menem e projetou uma mudança profunda com um kirchnerismo que bateu de frente com o mercado financeiro.

Como pregava o inquieto peronista marxista John William Cooke, são as massas que definem o horizonte das lutas, ou melhor, “não há política senão sob a condução da classe trabalhadora”. E vai ser o povo que vai definir qual caminho a Argentina vai seguir.

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