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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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Arraial de sangue

A tragédia favela do Santo Amaro, o nosso grito histérico e estéril.
12/06/2025 | 10h00
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“São João, São João

Acende a fogueira

Do meu coração”

As festas juninas são das tradições mais lindas da cultura popular brasileira. Não há quem não viaje até a infância nas recordações. As músicas, fantasias, danças, comidas, brincadeiras… Tudo nelas é feito para alegrar os olhos, o paladar e o coração, mas não há alegria que dure no empreendimento brutal que é o estado brasileiro.

Uma operação do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) na favela do Santo Amaro, no coração da Zona Sul carioca, em uma festa junina abarrotada de gente, deixou cinco feridos e um morto: Herus Guimarães Mendes. Filho único de Fernando e Mônica Guimarães Mendes. É o Rio de Janeiro, apenas uma rua deste arraial de sangue chamado Brasil.

Assisto, também comovida, à comoção e a revolta de uns poucos com o nascimento de mais uma família dilacerada, mais um pai que perderá o sono para sempre, mais uma mãe solta na vala escura da saudade. Não há palavras para traduzir ou consolar. Nada que eu ou você diga vai arrancá-los deste estado e impedir que outras famílias iguais nasçam todos os dias. É a nossa fala desesperada, histérica e estéril aos ouvidos de uma sociedade treinada para não escutar; adestrada para desprezar e esquecer.

Tudo isso ocorreu e eu estava do outro lado do oceano. Na terra dos “conquistadores” que com suas caravelas, cruz e pólvora aportaram saqueando, pilhando, matando, escravizando e apontando quais corpos valem à pena, quais não na margem oposta. Uma lógica que criou raízes e não só perdura até nossos dias, como se ampliou e sofisticou.  A vida segue para eles e elas, apesar dos compungidos gemidos pelos holocaustos do mundo.

É para nós que o relógio está parado e precisamos voltar a fazê-lo girar. Uma tarefa que não é exclusiva das mães que se organizam sempre e incansavelmente solidárias na dor e tão pouco apenas das populações das margens, que tristemente mandam imprimir “camisetas de saudade” para chorar à beira dos túmulos.

Foto: Voz da Comunidade

O difícil trabalho de fazer o tempo voltar a seguir para quem está parado no racismo institucional e estrutural, alimentado pelo racismo individual do cotidiano é principalmente de quem quebrou o relógio, ou seja, das instituições estatais — polícia, sistema de justiça, governos —, e elites em geral, mas não vão sem que forcemos, pois nada nos foi dado sem briga, mas muito nos foi tirado por quase nada, principalmente vidas.

Herus Mendes Guimarães engrossa uma estatística macabra, um feitiço de morte eterna que está em nossas mãos reverter se estiver em nossa voz incansável para pressionar. Uma voz engrossada por um coro uníssono que não aceite ser estéril e se converta em ação efetiva.

 

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