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Há um filme sobre uma peça de teatro que trata da revolução francesa. Na primeira cena, o rei e a rainha fogem da França e são recapturados na fronteira. A plateia reclama, dizendo que a revolução deve ser contada de outro modo. Outra encenação, com outros argumentos, digamos assim, “lineares”, e novamente a plateia protesta.
Vem, então, uma nova encenação. Passa-se na casa de caça de um palácio. Aparece uma bacia com água quente, uma camponesa prestes a dar à luz e a parteira pronta para o ato.
Na sequência, entra o aristocrata, que voltava da caçada. Vendo aquela água límpida, olha de soslaio para a grávida e… lava suas botas sujas na bacia destinada ao parto.
Desdém, deboche e desprezo.
“Pronto”, alguém grita da plateia, “é assim que se conta a origem da Revolução; assim se resgata a capacidade de indignação”.
Quando o mal se banaliza, perde-se a capacidade de indignação, dizem. Há vários modos de falar de um assunto. Assim como há vários modos de contar a revolução francesa.
Uma delas é mostrar algo que provoca a indignação. A lavagem das botas sujas na água do parto aponta para o ponto de estofo. Aquilo que nos sobressalta. São muitas as botas lavadas nas águas do parto. Essa foi mais uma.
Pois parece que, por aqui – se falarmos no que significa a aplicação do direito (decisão judicial) – parece que já temos o episódio da lavagem das botas do caçador na água destinada ao parto. Alguém tem de gritar da plateia jurídica: “tinha que acontecer algo para que todos venhamos a nos dar conta de que é preciso ter limites”.
Conto o episódio da lavagem das botas na água do parto dos processos: segundo noticiário, o Conselho Nacional de Justiça está investigando um caso inédito na magistratura brasileira: uma sentença assinada por um juiz federal, do TRF-1, que, na verdade, foi feita por meio de Inteligência Artificial, via ChatGPT. O problema foi que o ChatGPT simplesmente inventou jurisprudências do STJ. O advogado da parte derrotada na ação descobriu a fraude e reclamou.
O juiz transferiu a responsabilidade. Disse que essa parte da sentença foi feita por um servidor do seu gabinete. Chamou o ocorrido de “mero equívoco (…) decorrente de sobrecarga de trabalho que recai sobre os ombros dos juízes que integram o TRF-1”. Parece que o TRF1 não considerou o fato relevante. A corregedoria do tribunal arquivou o caso, que agora foi reaberto pelo CNJ. Agora o CNJ entrou em campo.
Como na peça francesa, estamos a gritar. Essa é a ponta do iceberg. Terceirizamos tanto a atividade que o robô coloca o direito a nu.
George Agamben fala da “vida nua”, “aquela que qualquer um pode tirar sem cometer homicídio ou aquela que qualquer um pode levar à morte, em que pese seja insacrificável”. Eu há décadas denuncio o “direito nu”. Um direito descontado. Um direito degenerado. Um direito que desrespeita o cidadão. E, digo eu, direito nu é aquele que pode ser tirado de qualquer pessoa sem que se diga que há injustiça. Sem remorso.
Quem é pago para julgar não pode terceirizar para o estagiário ou assessoria. E nem para o robô. Óbvio que há esboços de decisões. Normal. Mas o caso denunciado pelo O Globo mostra que o buraco é mais fundo.
Vimos que o presidente da Suprema Corte diz que encomendou um ChatGPT exclusivo para o Judiciário. O tal robô vai juntar toda a jurisprudência. E esboçar decisões.
Lembremos o que disse Noam Chomsky, em artigo publicado no dia 8 de março de 2023 no New York Times:
A mente humana não é, como ChatGPT e seus semelhantes, uma máquina estatística glutão para o reconhecimento de estruturas, que engole centenas de terabytes de dados e tira a resposta mais plausível a uma conversa ou a mais provável a uma pergunta científica.” Ao contrário… a mente humana é um sistema surpreendentemente eficiente e elegante que opera com uma quantidade limitada de informações. Não tenta lesionar correlações não editadas a partir de dados, mas tenta criar explicações. […] Vamos parar de lhe chamar Inteligência Artificial e chamá-lo pelo que é: “software de plágio”.
E complementa:
“Não crie nada, copie obras existentes de artistas existentes e altere-o o suficiente para escapar às leis de direitos autorais. É o maior roubo de propriedades desde que os colonos europeus chegaram a terras nativas americanas.”
Chomsky é autoexplicativo. Nada direi a mais.
Não acham que estamos indo longe demais? A peça francesa mostra que a aristocracia foi longe demais. Não sei se de fato ela lavava as botas nas águas do parto. Mas a peça simboliza algo que motivou a revolta.
Talvez o robô, paradoxalmente, tenha nos ajudado. Como aristocrata, ao lavar as botas nas águas destinadas ao parto, acabou de acender um estopim.
Se o ChatGPT substituir os juízes, os jornalistas, os desenhistas, o que nos restará? Pior: se os robôs fizerem melhor do que nós, fracassamos. Logo, vem a paradoxal conclusão: se o ChatGPT der certo, dará errado. Sacaram?
Quem gritará da plateia: alguém tinha mesmo que fazer algo, ao ver o aristocrata lavar as botas na água limpa do parto? Eis a pergunta de um milhão de robôs.
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