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Revolução dos cravos: “Carta ao 25 de abril”

A euforia popular tomou conta das ruas de Portugal e durante dois anos o "25 de Abril" foi uma grande festa
25/04/2024 | 16h02

O ICL Notícias marca os 50 anos da Revolução dos Cravos, movimento que restaurou a democracia em Portugal e levou à independência de ex-colônias na África.

Para comemorar a data, publicamos textos de historiadores, poetas e educadores, com análises e alusões ao que aconteceu no dia 25 de abril de 1974, algo para ficar marcado e inspirar gerações.

25 de Abril Sempre, fascismo nunca mais!

Por Rita Rato*

Portugal viveu, ao longo de 48 anos, a mais longa ditadura da Europa. Entre 1926 e 1974, mais de 36.000 presos políticos, entre os quais 2.000 mulheres, foram barbaramente violentados pela tortura física e psicológica, e pela ameaça sobre as suas famílias, amigos e camaradas.

Muitos não suportaram e morreram durante a tortura ou pouco tempo depois. Alguns não suportaram as sequelas da tortura e, profundamente fragilizados, puseram termo ao seu sofrimento. Outros morreram por falta de cuidados médicos, na prisão ou na clandestinidade. Muitas famílias foram separadas, mães e pais que não viram os seus filhos crescer, crianças privadas do colo dos seus, tanta gente que saiu a salto para o estrangeiro para fugir à guerra e à miséria.

Durante este período, a PIDE e as polícias do regime assassinaram perto de duas centenas de pessoas, alguns, logo ali onde publicamente resistiam por pão, trabalho e paz. Nas antigas colônias terão sido muitos milhares, as mulheres e homens negros sujeitos a detenções arbitrárias, trabalho forçado e condição de indigenato, analfabetismo e fome. E os muitos milhares de homens obrigados a combater na guerra colonial, ao longo de 13 anos, contra outros que resistiam pela libertação e independência.

E naquele dia 25 de Abril de 1974, dia inicial, inteiro e limpo, o povo de Lisboa saiu à rua para apoiar os capitães que quiseram pôr fim à guerra colonial, e um golpe que se transformava em movimento militar desaguaria numa revolução popular, construída nos meses seguintes, com a participação dos debaixo.

O Programa do Movimento das Forças Armadas — Descolonização, Democratização e Desenvolvimento — definiu medidas imediatas, de curto e médio prazo para um futuro de progresso e justiça social. No âmbito das suas competências, os governos provisórios legislaram nesse sentido, e outros avanços foram criados pela aliança Povo/MFA.

Os primeiros diplomas legais, publicados durante o processo revolucionário iniciado com a Revolução, foram de extraordinária importância: 1º de Maio Dia do Trabalhador, feriado nacional; 25 de Abril — Dia de Portugal; Independência das Colónias; Salário Mínimo e Pensão Social; Subsídio de Natal aos Pensionistas; Direito à Greve e proibição do Lock-Out; Direito à Proteção no Desemprego; Criação do Subsídio de Férias; Direito à Proteção na velhice; Direito à Licença de 90 dias no período de maternidade; Regulamentação das relações coletivas trabalho; Reforma Agrária; Direito à Habitação; Direito à Saúde; Direito à Educação; Gestão democrática das escolas; Direito ao divórcio nos casamentos católicos; Serviço Cívico; Apoio ao Cooperativismo. Uma parte significativa destas conquistas, e que constituem direitos fundamentais, viriam a ser integrados na Constituição da República Portuguesa de 1976.

As conquistas da revolução são o resultado da participação, da criatividade e das vivências das greves e protestos dos trabalhadores, das comissões de moradores, das lutas das mulheres, da mobilização dos jovens estudantes!

Para quem, como eu, nasceu em liberdade é difícil imaginar a coragem necessária para resistir, apoiar e solidarizar-se correndo o perigo de perseguição, prisão e de morte. Portanto, não posso deixar de agradecer a todos que tanto lutaram para conquistar direitos, liberdades e garantias democráticas.

25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!

 

*Diretora do Museu do Aljube Resistência e Liberdade, alentejana, mãe de um jovem de 15 anos; politóloga, formada em Ciência Política e Relações Internacionais, Universidade Nova de Lisboa; deputada à Assembleia da República entre 2009–2019, trabalhando nas áreas da Educação e Cultura, Trabalho e Segurança Social, Igualdade e Não Discriminação; colunista na Revista Visão entre 2015 e 2019 e em outros jornais e publicações, criadora de conteúdos pedagógicos na área da Educação para a Cidadania e Desenvolvimento; diretora do Museu do Aljube Resistência e Liberdade (Agosto 2020 – ), curadora da Exposição “Mulheres e Resistência — Novas Cartas Portuguesas e outras lutas”, 2021; curadora da Exposição “Ato (DES)colonial”, 2022; curadora da Exposição “Adeus Pátria e Família”, 2022; curadora da Exposição “25 de Abril SEMPRE”, 2024.

A ‘Revolução’ ameaçada?

Revolução dos Cravos

Por Lindener Pareto*, em Lisboa

Desembarcamos no cais de Belém. Lisboa parece estar em festa. Contudo, uma série de outdoors de partidos políticos de esquerda, centro, direita e extrema direita apontam uma tensão na terra de Camões.

Diante das incertezas políticas e do avanço da extrema-direita, um temor toma conta da sociedade portuguesa: estariam as conquistas sociais da Revolução dos Cravos (1974) em risco?

Nos últimos cinco anos o partido Chega, de extrema direita, passou de um único deputado para ser a terceira maior força política no Parlamento Português. “Bolsonaristas” e “Salazaristas” até um último fio de cabelo autoritário, os extremistas vociferam contra estrangeiros, contra o “comunismo” e até mesmo contra outro Luiz, um mais moderado e conciliador, que não pelejou pelo Império Português, mas que peleja pela independência crítica do Brasil no mundo, Luiz Inácio Lula da Silva.

Aparentemente, Lula não virá para os 50 anos do “25 de Abril”, mas certamente enviará o Ministro Mauro Vieira, que se juntará a outras delegações do mundo lusófono para celebrar a Revolução dos Cravos.

A Revolução

No dia 25 de abril de 1974, a cidade de Lisboa, Portugal e o vasto império colonial português na África acordam atônitos! Os “Capitães de Abril” e parte das Forças Armadas Portuguesas se recusaram a levar a cabo a ofensiva da Ditadura de Salazar — e de Marcello Caetano — contra as Guerras de Libertação das antigas colônias: Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e Cabo Verde.

Começava a “Revolução dos Cravos”! Iniciada por um golpe militar liderado por oficiais que queriam se descolar do desgaste da Ditadura Salazarista — que durou 41 anos (1933–1974) — o movimento foi logo apoiado pelas camadas populares e por diversos segmentos de esquerda, que ansiavam há anos por um grito de liberdade sufocado desde 1933.

Após a bem-sucedida conspiração militar que resultou na queda de Salazar e Marcello Caetano, a euforia popular tomou conta das ruas e durante dois anos o “25 de Abril” foi uma grande festa. E não apenas das possibilidades de um Estado Democrático de Direito, mas também rumo aos sonhos mais ousados de uma efetiva revolução socialista.

Os partidos políticos são imediatamente legalizados, os sindicatos se organizam novamente. No dia 1 de maio — do trabalho e do trabalhador — mais de um milhão de pessoas se juntam numa grande passeata e festa popular: Portugal fazia uma festa nunca “dantes” vista em sua História!

Sujeitos identificados com o “Estado Novo” salazarista foram para o exílio, incluindo o Ditador Marcello Caetano, que foi para o Brasil, recebido pela então Ditadura Militar brasileira (1964–1985). Empresas estrangeiras foram nacionalizadas.

Os direitos das mulheres, a reforma agrária, a educação inclusiva, o direito à autodeterminação dos povos e a aprovação de uma constituição, em 1976, com fortes inclinações socialistas fazem de Portugal o palco aberto para mais uma revolução efetivamente socialista no avançado século 20.

Partidos de esquerda, socialistas e até maoistas, se organizam e preparam o “Processo de Revolução em Curso”. Uma junta militar — Movimento das Forças Armadas — e os partidos se juntam num Conselho Revolucionário.

O fim do ano de 1974 e o ano de 1975, sob o Governo do Coronel Vasco Gonçalves, são particularmente tensos. Os liberais temem o avanço de uma revolução socialista “bolchevique”, a esquerda — mesmo em suas dissidências — teme uma contra-revolução da extrema direita, como a de Pinochet, no Chile.

Vasco Gonçalves é acusado de ter muita proximidade com os partidos de esquerda. Conspirações de toda sorte, incluindo a pressão dos Estados Unidos — com o diplomata “dementador” de revoluções, Henry Kissinger — desestabilizam o Processo Revolucionário.

Diferenças e desavenças entre Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Gonçalves — líderes do “25 de Abril”, contribuem para o desgaste da aliança entre os militares mais à esquerda e os partidos de esquerda.

Em 25 de novembro de 1975, militares “moderados” e reacionários, liderados por Melo Antunes e Ramalho Eanes, frustram os planos de uma revolução socialista popular e preparam um golpe preventivo. Abria-se o caminho para a “ala moderada” e para a presidência de Ramalho Eanes.

Os Cravos

Consta que no dia 25 de Abril de 1974, a garçonete Celeste Caeiro, ao ver nas ruas de Lisboa as tropas rebeladas para derrubar a Ditadura de Salazar, começou a conversar com os soldados.

Um deles pediu a ela um cigarro. Celeste disse que não tinha, mas que podia lhe dar flores. E foi assim que Celeste foi aos poucos espalhando cravos pela cidade, colocando no canos dos fuzis (espingardas) um cravo de resistência e poesia. Daí a alcunha de “Revolução dos Cravos” para a Revolução Portuguesa.

Tal feito passou para a história como uma “revolução sem sangue”, uma vez que ninguém precisou disparar tiros. A “romantização” do ato fez muita gente esquecer que a revolução começou no mundo colonial, com a luta dos povos de Angola, Guiné, Moçambique e Cabo Verde contra a sanguinária Ditadura de quase 50 anos de António de Oliveira Salazar e sua tenebrosa polícia política, a PIDE.

Consta ainda que Celeste (dos cravos) perdeu todos os seus pertences num incêndio no seu apartamento no Chiado, em 1999. Dizem que Celeste — ainda viva — mora numa pequena casa a poucos metros da Avenida da Liberdade, com uma pensão de 370 euros por mês.

 

*Professor e historiador. Mestre e Doutor pela USP. Professor de História Contemporânea e Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). É apresentador do “Provocação Histórica”, programa semanal de divulgação científica de História e historiografia nos canais do ICL.

Muito antes… ‘O sonho e o pesadelo’

Por Angelo Battistini Marques*, em Lisboa

Sábado, 27 de outubro de 2018

Estávamos iniciando um curso de imersão da Vindas Educação em Portugal, conduzido pela Luzia e pelo David. As atividades daquela manhã fria começaram na Praça do Marquês de Pombal, em Lisboa, de onde desce a Avenida da Liberdade.

Após contar as histórias do imponente Marquês, nos voltamos para a avenida da Liberdade. Eles explicavam que nas comemorações do 25 de Abril, data da Revolução dos Cravos, todos os anos a multidão caminha pela avenida para celebrar o fim de uma ditadura que durou 48 anos em Portugal (de 1926 a 1974).

Recordamos e cantamos a canção “Tanto Mar”, tanto na versão proibida pela ditadura brasileira e também a outra, a que foi aprovada pela censura e gravada no disco “Chico Buarque” de 1978, aquele em que há uma foto do Chico, quase um menino, à frente de umas samambaias.

Luzia e David também contaram o porquê do nome “Revolução dos Cravos”: Abril em Portugal é primavera (“Lá é primavera, pá / Cá estou doente”) e é comum venderem-se cravos nas ruas. Naquele ano de 1974, quando o Brasil vivia uma ditadura e Portugal estava se libertando da sua, uma moça começou a distribuir cravos vermelhos aos soldados que ocupavam as ruas de Lisboa e concretizavam a Revolução. Alguns deles colocavam os cravos nos canos dos fuzis. Virou o símbolo da Revolução.

Uma Revolução que não se fez com sangue, mas com flores. Uma Revolução em que os militares de baixa patente, os “Capitães de Abril”, lutaram para restabelecer a Democracia. E que trouxe a Portugal, apesar de inúmeros percalços, uma série de transformações que fazem hoje um país moderno, agradável e muito, mas muito mais inclusivo e, portanto, democrático.

Uma Revolução que reconheceu a independência e estancou a exploração (ainda que sem a devida reparação) das antigas colônias africanas, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Lembro de ter dito a eles: “Algum dia virei aqui no 25 de Abril e descerei a Avenida da Liberdade com vocês”. Promessa é dívida!

No dia seguinte, domingo, era o segundo turno das eleições no Brasil. Depois de um dia cheio, chegamos ao hotel à noite e recebo a mensagem do Mateus, meu sobrinho: “Aproveita que está aí e não volte”. A extrema direita vencera as eleições no Brasil. Parecia um pesadelo.

No dia seguinte, o trabalho tinha que continuar, mas havia uma tristeza, um peso sobre os ombros. A Luzia me trouxe um cravo vermelho, que guardei, renitente. Nessa horas nos apegamos a qualquer fio de esperança. “Vai passar”.

Na segunda-feira à noite, num restaurante, fomos atendidos por uma garçonete russa que, quando descobriu que éramos brasileiros, com um português precário nos perguntou: “O que aconteceu no vosso país? Como podem eleger uma figura tão (… lhe faltaram adjetivos…) absurda?”. O mundo estava estupefato e nós, brasileiros, atordoados. O pesadelo só estava começando.

Antes… “Sei que há léguas a nos separar”. Abril de 2024.

Se havia uma promessa, nada mais adequado que cumpri-la numa data especial, os 50 anos da Revolução. Cruzei de novo o Mar Salgado (“Deus quis… que o mar unisse, já não separasse”) e cá estamos em Portugal. Seis anos haviam se passado, saímos das trevas a um resquício de luz, que ainda é fraca e ameaçada, mas que pode ser vista, ainda há luz.

1º dia. Convento de Mafra. 21 de abril

A primeira parada na nova estadia em Portugal é a pequena cidade de Mafra, a 40 km ao norte de Lisboa. O Convento, com uma área de 38 mil metros quadrados, foi construído no século 18, auge da exploração do ouro no Brasil, a mando do rei D. João V.

A curiosidade em conhecer o local veio da leitura do romance “Memorial do convento”, do fabuloso português José Saramago. O livro tem como pano de fundo o período da construção do convento e os efeitos da obra sobre a pequena população local (como disse, isso é só o pano de fundo, a história vai muito além disso, mas não vou estragar a leitura).

O convento foi construído como uma promessa do rei para que sua esposa, Maria Ana da Áustria, tivesse um “filho varão” para sucedê-lo no trono (machismo estrutural puro, mas a culpa não é minha e sim da lei do império colonial português).

A fachada no convento, hoje nomeado Palácio Nacional de Mafra, tem impressionantes 230 metros de comprimento. A entrada é pela igreja, toda em mármore e pedras da região. Nada é pintado, os mármores com suas cores originais (branco, cinza, azul, vermelho…) no solo, nas paredes e no teto fazem a decoração da igreja. Na parte externa, duas torres com carrilhões que possuem, cada uma, 102 sinos.

Aguardem a surpresa, ainda neste texto, daqui a algumas linhas. No interior da Igreja, seis órgãos de tubo. Isso mesmo: SEIS órgãos. É a única no mundo, a maioria possui um ou, exagerando, dois órgãos. Aqui há seis. Existem peças musicais escritas exclusivamente para os seis órgãos da Basílica de Mafra. No interior, além do convento, uma ala para receber a realeza e uma biblioteca com acervo de 36 mil livros, uma das mais importantes da Europa.

Ao sairmos da visita ao convento, a surpresa, ouvimos um concerto de carrilhões. Impressionante. J. S. Bach (entre outros) tocado nos sinos de uma igreja. Começou bem esta estadia!

2º dia. Museu do Aljube — Resistência e Liberdade

O Museu está fechado às segundas-feiras, mas a curadora do Museu, Rita Rato, aceitou abrir as portas exclusivamente para a equipe do ICL. O museu foi instalado em 2015 em uma antiga construção no centro de Lisboa, ao lado da Igreja da Sé. Durante a ditadura salazarista o local era usado como prisão política.

Muitos foram os presos e torturados nos 48 anos do regime. Hoje o museu honra a memória dessas pessoas que resistiram, combateram a ditadura e lutaram pela liberdade. Também mostra ao público, particularmente aos jovens, o valor da democracia e a importância de lembrar esse período, como forma de não deixá-lo para trás sob o risco de repeti-lo.

Rita Rato, a nossa anfitriã, é uma jovem impressionante. Antes de ser curadora do Museu, foi deputada na Assembleia Nacional de Portugal pelo PCP (Partido Comunista Português) durante 10 anos, uma das mais jovens (se não, a mais jovem) deputadas da história. Com uma clareza impressionante, falou da história da ditadura portuguesa, da história do Museu, da importância da memória, de não esquecer o passado, que nos define e nos projeta.

Hoje o Museu apresenta uma retrospectiva desses 50 anos de revolução. A luta não terminou com a queda da ditadura. As conquistas são contínuas, pequenos passos, tão minúsculos que, às vezes, dão a impressão de que não andamos, mas quando vistos do que havia há 50 anos, se percebe: caminhamos!

Essa é a primeira lição até aqui: não há descanso, mas também não há fardo que não conseguimos carregar. E também não podemos deixar de lado o fardo daqueles que vieram antes.

“25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!”

Continuemos!

 

*Professor do IMT (Instituto Mauá de Tecnologia), educador e membro do Conselho Curador e Acadêmico do Instituto Conhecimento Liberta (ICL).

Hoje, 25 de abril

Por Angelo Battistini Marques*, em Lisboa

25 de abril é feriado nacional em Portugal. Portanto, a festa começa no dia anterior. Para celebrar a data, fomos convidados à casa da Rita Rato, nossa velha amiga que acabamos de conhecer, e que é também curadora do Museu do Aljube Resistência e Liberdade. Uma noite agradável. Falamos de política, sonhos, amor, música. Cantamos, rimos, conversamos. Cantamos muita música brasileira.

É incrível como os portugueses conhecem e amam não somente nossas músicas, mas nosso país de forma geral, nossa política, nossas contradições, nossa forma de lidar com as coisas.

À meia noite, da janela de onde se vê o Rio Tejo, uma lua cheia maravilhosa e pessoas na rua andando já com cravos vermelhos nas mãos, presenciamos a queima de fogos anunciando a entrada do dia de festa, o dia da Liberdade. Como se fosse um “Mini Réveillon”, as pessoas se cumprimentam e desejam “Feliz 25 de abril!”. Cantamos “Grândola, vila morena”, a música tema da Revolução (É, parece um réveillon mesmo, só que no lugar de “Adeus ano velho”, canta-se a “Grândola”):

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, ó cidade

Explico: o movimento dos Capitães, articulado para derrubar o governo ditatorial, precisava agir secretamente e, para isso, usaram duas senhas. Vamos lembrar que em 1974 não havia internet, nem celular, muito menos grupos de zap, então, para sincronizar os movimentos das tropas, combinaram com as rádios que quando tocassem a inocente e insuspeita música romântica “E depois do adeus” com o cantor Paulo de Carvalho (https://youtu.be/6wxiu1n474w?si=yzzzGUtT45intOTJ ), as tropas deveriam começar o movimento, isso aconteceu ainda na noite do dia 24.

A deixa para a entrada em ação, já na madrugada do dia 25, seria dada pela música do cantor e compositor Zeca Afonso, perseguido pela censura, com uma canção singela, que falava de uma pequena vila ao sul de Lisboa e que driblou a censura. Escute a música e veja como é fácil enganar fascista com uma pitada de inteligência (https://youtu.be/EsLwveFJ8gM?si=L8RaC3kRZ2u43r0o ). Depois disso, a música gravada em 1971 tornou-se o símbolo popular do movimento.

Conversamos com algumas pessoas que estavam em Lisboa no dia em que tudo ocorreu, que na época eram jovens trabalhadores e estudantes, e perguntamos sobre a história das músicas e ninguém, claro, sabia das senhas, somente as tropas. Essa história só foi conhecida depois do fato consumado. E foi aí que a música ficou famosa e é até hoje lembrada como símbolo da ação.

Avenida da Liberdade

No dia 25 havia muita gente na rua. O metrô completamente lotado, tivemos que esperar 3 composições para poder entrar, isso porque estávamos numa das estações iniciais da linha. Idosos, muitos deles que presenciaram os fatos de 50 anos atrás, jovens, crianças. Cravos vermelhos nas mãos, nas camisetas, nos cartazes.

Às 14h30, a multidão já tomava conta desde a praça Marquês de Pombal, descendo a Avenida da Liberdade até o Rossio, um trecho de pouco menos de 2 km. Pessoas em festa, rindo, tirando fotos. Movimentos, sindicatos, associações e (poucos) partidos políticos. Muito além de um movimento político, um movimento da sociedade. Milhares de pessoas e nem mesmo os jornais locais dão um número, mas certamente centenas de milhares.

Num momento em que a extrema direita, saudosa da ditadura salazarista, cresce em Portugal, essa manifestação ganha um significado ainda mais importante para recordar e afirmar o que aconteceu há 50 anos. Democracia.

O presidente Marcelo Rebelo Soares falou em reparação histórica às antigas colônias e aos escravizados no Brasil. Não se trata de remover o passado sujo para espalhar lama, mas de entender que o passado nos formou e nos trouxe até onde estamos. Nenhuma reparação vai apagar o sangue dos escravizados e dos torturados, mas o gesto, muito mais simbólico que efetivo, é um sinal de paz. Com o passado e com o futuro.

“Que os mais velhos não se esqueçam e os mais jovens possam entender”. É o que se diz por aqui.

Durante o dia, o pequeno museu do Aljube recebeu cerca de 2.000 visitantes. Memória sendo cultivada para que tempos como aqueles não se repitam. Para que o museu não torne a ser prisão. Enquanto no Brasil tentamos esquecer o passado para “olhar para frente”, em Portugal muitos querem mostrar o passado para evitar que ele volte lá na frente, como está tentando fazer.

Lula, precisamos do nosso Aljube!

PS. Para quem quiser entender mais, recomendo o livro: “A Revolução Portuguesa”, de Claudio de Farias Augusto, Coleção “Revoluções do século 20”, Editora da UNESP.

*Professor do IMT (Instituto Mauá de Tecnologia), educador e membro do Conselho Curador e Acadêmico do Instituto Conhecimento Liberta (ICL).

Carta ao 25 de abril

Por David Rodrigues*

Se soubesse que vinhas, que vinhas mesmo,

nunca me teria deixado conformar pela noite.

Teria calado menos,

teria ficado irado sim, mas desanimado nunca.

Se soubesse que vinhas, que vinhas mesmo,

sonharia mais sonhos e menos clandestinos.

Se soubesse que vinhas, teria tido mais esperança,

tinha acendido ainda mais luzes para guiar o teu caminho.

Teria velado mais na crença da tua iminente chegada.

Mas vieste!

Chegaste de madrugada, do inesperado lado esquerdo.

Perguntei-te: “É possível?” e respondeste: “Sim!”.

Nessa noite, só o luar ficou nas celas,

cobriram-se de ridículo os polícias do pensamento.

Iluminaste as dores incuráveis da guerra,

Vibraste num país triste, pequeno e encolhido.

Sonhava que havias de vir e vieste.

Resgataste-me.

Devolveste o que eu mal suspeitava

que me tinha sido roubado.

Trouxeste o meu corpo

para cima dos meus pés,

afagaste-me a cabeça e disseste:

“Agora é contigo!”

**Ouça o poema declarado aqui no link: 

 

*Educador,  poeta,  músico,  e professor de Educação Especial. É fundador da ONG Pró-Inclusão, foi seu Presidente (2008-2020) e é diretor da Revista “Educação Inclusiva”. Recebeu em 2017 o “Prémio de Excelência de Liderança Internacional” pelo Councilfor Exceptional Children – DISES (EUA), em 2020 foi galardoado com a Medalha de Ouro dos Direitos Humanos pela Assembleia da República e em 2023 foi condecorado pelo Presidente da República como Grande Oficial da Ordem da Instrução Pública. É membro, desde 2015,do Conselho Nacional de Educação.

 

Leia também: Portugal: Partido Socialista assume derrota e país dá guinada à direita

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