Por Iago Filgueiras*
Atualmente, o período da ditadura militar continua sendo alvo de debates e disputas pelo controle da narrativa. Com um ar saudosista, nostálgico e ignorando o autoritarismo e a violência do Estado brasileiro, muitos apontam que o período foi marcado pelo crescimento da economia do país, o tal “milagre econômico”.
Há quem diga que o período foi bom para os trabalhadores e “cidadãos de bem” e que só sofreu quem era “vagabundo”. Mas os 434 mortos e desaparecidos políticos contradizem essa história. Segundo estudos, a ditadura teria torturado mais de 20 mil pessoas. O regime reprimiu trabalhadores do campo, moradores de favela, sindicalistas, opositores e professores universitários.
O suposto “milagre econômico” é uma das principais narrativas usadas para glorificar a ditadura militar. No início, logo após o golpe de 1964, a inflação beirava os 100% ao ano. Mas, após 1968, e nos cinco anos seguintes, a economia cresceu e o PIB chegou a avançar 14% em 1973 — um “milagre”, certo? No entanto, como diria a economista Maria da Conceição Tavares, “ninguém come PIB”.
A seguir, vamos mostrar cinco fatos que mostram como a ditadura fez um milagre para as elites, mas quem pagou (e ainda paga) a promessa foram os pobres. Ainda hoje, as medidas adotadas pelo regime reverberam na sociedade brasileira, e é preciso informação para não cair nas armadilhas de quem usa um suposto crescimento econômico para justificar a repressão, o assassinato e a tortura de milhares de presos políticos.
5 fatos que provam que o “milagre econômico” não foi um milagre
O “milagre econômico” da ditadura militar é celebrado por seu crescimento do PIB, mas os números escondem uma realidade perversa: dívida externa explosiva, salários corroídos, saúde e educação negligenciadas e desigualdade recorde. O suposto “milagre” resultou em uma crise hiperinflacionária e um país mais injusto.
Abaixo, cinco fatos que provam por que ele não passou de um mito.
1. O Brasil dobrou sua dívida externa durante o período
Durante o chamado “milagre econômico”, o Brasil teve um crescimento econômico expressivo, mas também viu sua dívida externa explodir. Para sustentar o desenvolvimento e alimentar a propaganda de que o país estava “dando certo”, a ditadura militar apostou em empréstimos externos.
No livro O Brasil Endividado, o professor de economia da UFRJ, Reinaldo Gonçalves e o doutor em história econômica e professor da UFABC, Valter Pomar, traçam o histórico do desenvolvimento da dívida externa durante o regime ditatorial. À época do golpe, o montante somava cerca de US$ 2,5 bilhões. Em 1969, saltou para 11% do PIB; quatro anos depois, foi para 16,6%; e, no penúltimo ano da ditadura militar, a dívida externa brasileira era de cerca de 48,2% do PIB.
O resultado disso? Em artigo publicado em 1991, os economistas Yoshiaki Nakano e Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Fazenda no governo Sarney, apontam algumas consequências provocadas pelo alto endividamento público deixado pelos militares após o término do período.
Para eles, embora o Brasil não tenha sido derrotado em guerras durante o século 20, nem sido obrigado a pagar reparações em decorrência de conflitos, a soma do endividamento externo, das crises do petróleo a partir de 1979 e da suspensão de financiamentos externos a partir de 1982 provocou, em terras brasileiras, um cenário de hiperinflação semelhante ao das nações envolvidas nas grandes guerras.

No período do “milagre econômico”, o aumento do PIB foi acompanhado de um crescimento vertiginoso da dívida externa. Foto: reprodução
2. O salário mínimo perdeu 50% do seu poder de compra
Criado em 1940, durante o governo de Getúlio Vargas, a função do salário mínimo era garantir aos trabalhadores dinheiro suficiente para atender às necessidades básicas como alimentação, saúde e habitação. Porém, o propósito só se cumpre se o valor recebido acompanha ou supera o custo necessário para se viver no país, certo?
Diversos presidentes promoveram políticas de valorização do salário mínimo. Antes do golpe de 1964, o então presidente João Goulart chegou a promover um aumento de 100% no valor recebido pelos trabalhadores, como forma de aumentar o poder de compra frente à inflação que assolava o país.
Porém, durante a ditadura militar, o modelo econômico implementado privilegiou o crescimento da economia e a realização de investimentos públicos e privados em áreas como industrialização e infraestrutura. A valorização do salário mínimo acabou ficando para trás e, entre 1964 e 1985, ele amargou uma perda de valor real em torno de 50%.
O economista Antônio Delfim Netto, ministro da fazenda entre 1967 e 1974, dizia que o importante era “fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo”. O problema é que a população foi usada como fermento, mas os pobres não conseguiram nem o primeiro — e nem o último — pedaço.

Um dos signatários do AI-5, Delfim Netto foi ministro da Fazenda durante a ditadura militar no Brasil, permanecendo no cargo de 1967 a 1974. Foto: Folhapress
3. O crescimento ignorou saúde e educação e aprofundou a desigualdade
O crescimento do PIB era visível e a propaganda dos militares vendia a imagem de um Brasil em pleno desenvolvimento e rumo à modernização. No entanto, a saúde e a educação públicas acabaram ficando no escanteio.
Em 1973, o auge do chamado “milagre econômico”, o PIB cresceu cerca de 14%. Mas nesse ano, o Ministério da Saúde recebeu apenas 1% do orçamento federal. Já os Ministérios dos Transportes e das Forças Armadas ficaram, respectivamente, com 12% e 18%. As prioridades eram nítidas.
O SUS ainda não existia e o atendimento médico era feito pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e restrito aos trabalhadores formais. Em entrevista ao portal da Fiocruz, Carlos Ponte, historiador e doutor em políticas públicas, afirmou que, na época, “virou um grande negócio mexer com saúde”. Entre 1964 e 1974, os estabelecimentos médicos privados passaram de 944 para mais de dois mil.

Antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), aqueles que não tinham um emprego formal dependiam de instituições de caridade para obter atendimento médico. Foto: Arquivo Fiocruz
Na educação, antes da ditadura militar brasileira, a Lei de Diretrizes e Bases aprovada em 1961 previa que a União investisse ao menos 12% do PIB em educação. A Constituição de 1967, aprovada durante o regime militar, alterou o dispositivo. Resultado: em 1970, o investimento na área caiu para 7,6% do PIB; em 1975, 4,3%.
Durante o “milagre econômico”, o salário mínimo perdeu poder de compra e os dispositivos econômicos adotados pelos militares não previam o reajuste conforme a inflação. O crescimento do PIB não impactava a realidade prática dos trabalhadores, afinal, nas palavras da célebre economista, Maria da Conceição Tavares, “ninguém come PIB”.
Com redução nos recursos da educação, privatização da saúde e baixos salários, o país ficou cada vez mais desigual. Entre 1960 e 1972, os 5% mais ricos da população passaram a concentrar ainda mais renda: de 28% para quase 40%. O índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, saltou de 0,54 em 1960 para 0,63 em 1967. Neste indicador, quanto mais próximo de um, mais desigual.
Além disso, com o “milagre econômico” impulsionado pelos investimentos em industrialização e sem uma reforma agrária, o êxodo rural durante a ditadura militar foi evidente. A população urbana brasileira saltou de cerca de 50% em 1964 para quase 70% em 1984.
4. A repressão impediu greves e congelou salários
O “milagre econômico” trouxe um crescimento para o PIB brasileiro por algum período. Além disso, o incentivo à industrialização aumentou a população urbana e a mão de obra disponível. O acesso à saúde era difícil, os investimentos em educação baixíssimos e o salário mínimo valia cada vez menos. Parece uma receita para a insatisfação dos trabalhadores, certo?
Durante a ditadura militar brasileira, o chamado “milagre econômico” foi construído com base no esforço do povo, que viu o crescimento mas não foi contemplado com nenhuma parcela dele. Com os salários congelados e cada vez mais desvalorizados, o custo da folha de pagamento reduziu e a elite empresarial pôde fazer grandes investimentos.
Como parte do projeto de sufocar a atividade sindical, no período diversos líderes foram presos, torturados, assassinados e substituídos por simpatizantes do regime.
Com o Ato Institucional Nº5 (AI-5), que restringiu o direito ao habeas corpus e concedeu poderes quase ilimitados aos militares, o sindicalismo tinha cada vez menos margem para atuar. Deflagrar greves, organizar protestos e exigir direitos exigia coragem e expunha os trabalhadores a riscos incalculáveis. A recomposição do salário mínimo só foi ocorrer na década de 1990, com o sucesso do Plano Real.
Com o crescimento da população urbana e expansão das favelas, os trabalhadores eram atacados até mesmo onde moravam. Em 2024, a Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos reconheceu as violações cometidas pelo Estado brasileiro, que durante o regime militar removeu a força e restringiu os direitos de mais de cem mil moradores de favelas.

Repressão policial durante greve dos metalúrgicos no ABC paulista em 1979. Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo
5. O legado do milagre: dívida, inflação e desigualdade
O chamado “milagre econômico” da ditadura militar foi vendido como sinal de progresso, mas deixou um rastro de problemas que explodiram nos anos 1980. Com uma dívida externa de cerca de US$ 100 bilhões — metade do PIB da época — e a inflação em escalada, o país entrou numa crise prolongada.
A desvalorização do cruzeiro em 1979 encareceu importações e a inflação saltou de 15,6% em 1973 para 100% em 1980. Um ano depois, o PIB recuou 4,3%.
Em 1985, José Sarney assumiu o governo com uma inflação em 215% e reservas cambiais esgotadas. Sem dinheiro para arcar com a dívida deixada pelos militares, o país declarou moratória e rompeu com o pagamento dos juros. O acesso a crédito estrangeiro, que já era difícil, piorou. Após a saída dos militares do Executivo, vieram diversos planos econômicos fracassados, trocas de moedas e medidas que empurraram a crise.
Em 1987, a inflação anual chegou a 1.973%. O dinheiro não valia nada, e os trabalhadores corriam às compras no dia de pagamento para garantir a compra do mês antes que a moeda se desvalorizasse ainda mais. Em 1990, com um plano para acabar com a inflação, Fernando Collor confiscou 80% do dinheiro guardado na poupança, gerando um trauma coletivo para milhões de brasileiros.
Quem já era pobre ficou cada vez mais pobre. Somado a tudo isso, o êxodo rural impulsionado pelo “milagre econômico” aumentou a população urbana, mas o acesso à infraestrutura não acompanhou o crescimento. As favelas cresceram, a desigualdade se aprofundou, o dinheiro perdeu o valor, e o “milagre” mostrou sua real face: crescimento econômico sem distribuição de renda, sustentado por endividamento e desigualdade social.
A conta chegou e, como sempre, foi cobrada dos mais pobres. O país só conseguiu recuperar uma certa estabilidade econômica após o sucesso do Plano Real, em 1994. Foi apenas nesse período que o salário mínimo, de fato, foi valorizado. As consequências do “milagre econômico” foram muitas e até hoje ecoam na sociedade brasileira.
A disputa por memória
No debate público, não são raras as vezes em que o período da ditadura militar brasileira é relativizado com base em uma idealização de um passado glorioso. Ainda hoje, há quem diga que os tempos eram melhores e que houve, de fato, um “milagre econômico”.
Não se pode dizer que não houve um certo crescimento durante alguns anos da ditadura militar. No entanto, não é possível valorizar o crescimento do PIB brasileiro sem levar em consideração os impactos das medidas adotadas pelo regime no aumento da desigualdade social, repressão a opositores e cassação de direitos políticos.
Para Cláudia Plens, doutora em arqueologia e professora do Departamento de História da Unifesp, o custo desse “milagre” foi significativo. Em entrevista ao ICL Mercado e Investimento, ela apontou que esse desenvolvimento foi promovido “com o aumento do endividamento externo, acentuação da desigualdade social, hiperinflação, fome e desemprego”.
Se houve milagre, quem ainda paga a promessa é o povo
Para Cláudia, a reprodução dessa narrativa de que o período da ditadura militar foi positivo pode ser explicado “pela idealização de um passado alimentado pela memória seletiva”. Para a professora, para justificar a ideia de um “milagre econômico” é preciso ignorar as adversidades e injustiças sociais que marcaram o período.
O Brasil nunca enfrentou de fato o seu passado autoritário. A anistia aos militares assegurou a impunidade às violações contra os direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro. Plens aponta que um trabalho de fortalecimento e educação sobre a memória história da ditadura militar é fundamental para promover um entendimento mais preciso sobre o “milagre econômico” e suas consequências.
Fortalecer a democracia no contexto contemporâneo passa por combater essa narrativa e lutar por políticas públicas para combater a desigualdade social e econômica fruto de um passado autoritário.
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*Estagiário sob supervisão de Leila Cangussu
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