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Uma crônica de Nelson Rodrigues sobre a morte de Paulinho, seu irmão

Jornalista, escritor e dramaturgo publicou série de 80 textos autobiográficos no jornal carioca Correio da Manhã
27/03/2024 | 20h40

Hoje publicamos no portal ICL Notícias uma crônica de Nelson Rodrigues. Esta seção resgata textos, imagens e sons que façam o leitor dar uma pausa na marcha imediata e angustiante dos fatos para refletir com autores geniais do Brasil e de outros países. Dessa vez, destacamos a sexta das 80 crônicas autobiográficas publicadas diariamente pelo autor no jornal Correio da Manhã, entre 18 de fevereiro e 31 de maio de 1967. Este texto saiu na edição do dia 2 de março daquele ano, após uma semana de interrupção pela tragédia das chuvas no Rio de Janeiro — a queda de um edifício em Laranjeiras matou Paulo Rodrigues, irmão mais novo de Nelson, sua esposa, filhos e sogra. As memórias rodrigueanas foram editadas em 1993 no livro “A menina sem estrela” (Companhia das Letras), organizado por Ruy Castro.

Crônica 6 — A menina sem estrela

Nelson Rodrigues

 

Quando meu irmão Mário Filho morreu, escrevi que a morte é anterior a si mesma. Ela começa muito antes, é toda uma luminosa e paciente elaboração. Nos seus últimos dias, Mário Filho teve a lucidez, a sabedoria, a chama de quem vai morrer. Não vi no seu rosto, no seu último rosto, nenhum espanto, nenhum medo, nenhum ressentimento. Rosto tão doce, tão compassivo, tão irmão. Parecia uma morte consentida, quase desejada.

Mas vi meu irmão Mário e não vi meu irmão Paulo. Nem Maria Natália, nem Ana Maria, nem Paulo Roberto, nem d. Marina. O que me pergunto é se também Paulinho, sua mulher, seus filhos, sua sogra começaram a morrer antes. E só peço que nem meu irmão, nem meus sobrinhos, nem minha cunhada tenham percebido nada. Imagino uma morte compassiva, sem tempo para o medo e para o grito. Mas o pior é que Maria Natália percebeu, sim, e gritou.

Tudo começou no domingo. Eu e Lúcia, em nossa casa, ligamos no Johnny Halliday; Paulinho, na dele, com toda a família, ouvia o mesmíssimo Johnny Halliday. Já na véspera e por todo o domingo, a terra deslizara por debaixo da pedra. Era a morte e ninguém sabia. João, amigo do meu sobrinho Paulo Roberto, estava lá. E Maria Natália fazia anos (tinha ódio da data). João fora buscar Paulo Roberto para um cinema. Eu, em casa, via o cantor arrancar a camisa e, seminu, atirá-la na plateia, num rompante erótico.

O que houve, em seguida, foi tremendo. No vídeo, estava o dorso, lustroso e crispado. E embaixo, na plateia, correrias, atropelos, uivos. Cabeludos e meninas cavalgavam nas cadeiras. A camisa foi possuída, violentada, estraçalhada. Na rua Cristóvão Barcelos, Paulo Roberto preferia Johnny Halliday (o cantor era a morte), preferia Johnny Halliday ao cinema. E, então, a pedra se desprende. Ia levar, de roldão, uma casa, o edifício seguinte e, por fim, o de Paulinho. Maria Natália empurra o João: “Corre, que a casa está caindo!” O menino correu. Veio pela escada, enquanto o mundo desabava. Diz ele que ouviu, ainda, o grito de Ana Maria. Mas por que seria o grito de Ana Maria e não um grito sem dono, desgarrado, perdido?

Na minha mesa, base o telefone. Lúcia atende. Está falando e eu pergunto “Quem é?” Ela tapa o fone: “Papai.” Mentira. Era minha irmã, desvairada: “Desabou o edifício de Paulinho.” Lúcia sai do telefone; mente mais: “Lá de casa. Papai chegou de Petrópolis.” Depois, o telefone não parou mais e só ela atendia. Continua mentindo com medo do meu coração. Até que um amigo, o dr. Silva Borges, telefona, avisando: “A Continental deu que Paulo está no Souza Aguiar.” Só então minha mulher começou a dizer a verdade. Repetia, desanimada: “Se está no Souza Aguiar está vivo”.

Paulo Rodrigues era cronista do jornal O Globo, onde manteve a coluna "Se a cidade contasse..."

Paulo Rodrigues era cronista do Globo, autor da coluna “Se a cidade contasse…”: sua morte foi uma das tragédias na vida de Nelson, que o amava “como a um filho”

Eu, Lúcia, meus filhos Joffre e Nelsinho, meus irmãos Augusto, Helena, Stella varamos a noite, de hospital em hospital. No Souza Aguiar, nada. De O Globo vieram Carlos Tavarez, Menezes, Ricardo Serran, Carlos Alberto. Meu primo Augusto Rodrigues e meu cunhado Francisco Torturra foram para General Glicério; e, lá, fizeram uma vigília de lama, pedra e vento. Eu só pensava em Paulinho, ei s a verdade, só pensava em Paulinho. Ao meu lado, Mário Júlio Rodrigues só pensava em Paulinho (e os primeiros mortos vinham esculpidos em lama). No meio da madrugada é que, de repente, eu percebo tudo: se morressem a mulher, os filhos, se morresse toda a família ele não sobreviveria. Era uma estrutura doce e tão frágil. E havia entre ele e Maria Natália uma paixão de Pedro, o Cru, por Inês de Castro; e do casal pelos filhos um amor de loucura. Penso também em d. Marina, mãe e avó, que os seguia, trêmula de amor, como uma fanática.

Na segunda-feira, veio a notícia: reconhecidos Maria Natália, Ana Maria, Paulo Roberto e d. Marina. Paulinho não fora ainda encontrado. Eu o imaginei vivo, por um milagre, vivo. Mas quando visse os outros mortos, não tardaria a raiar para ele ou a estrela dos loucos ou a estrela dos suicidas.

O espantoso é que, desde o desabamento, eu me encontro, a toda hora, com minha infância. Meus pais ainda moravam em Aldeia Campista quando dois namorado se mataram no Alto da Tijuca, perto da Cascatinha. Daí para o jornal de modinhas foi um pulo. Três ou quatro dias depois, o pacto de morte tinha seu verso, a sua rima, o seu canto. Eis o que eu queria dizer: vem, de minha infância, o deslumbramento por todos os que se juntam para morrer.

Cada um de nós morre só, tão só, tão sem ninguém. E meu irmão Paulinho, sua mulher, seus filhos (e d. Marina) parece unidos numa morte consentida e desejada. Sim, como os namorados de velhas gerações. Mas eu falo em “irmão” e não é bem a verdade. Ou por outra: seria convencionalmente irmão e, por sentimento, filho. Todos nós, seus irmãos mais velhos. Amávamos Paulinho como a um filho, e pior: como a um filho caçula. Por isso é que a sua morte nos fere, e tão fundo, na carne e na alma.

Recorte da primeira página do Correio da Manhã após a tragédia que matou Paulo Rodrigues

Recorte da primeira página do Correio da Manhã anunciando a interrupção das crônicas de Nelson Rodrigues

Na madrugada de segunda para terça-feira, acharam seu corpo. Graças, graças, iam ser enterrados juntos. Às nove da manhã estava eu na Capela Real Grandeza. Alguém veio me sussurrar: “Ainda não chegaram.” Colocam as primeiras coroas nos cavaletes. Houve um instante em que me deu um ódio negro e cego contra o bar da capela, instalado no andar de cima. É um balcão que serve tudo, Coca-Cola, Guaraná, Grapete, sanduíche e cafezinho. A dor tem, ao fundo, um alarido de xícaras e de pires. Enquanto os cinco caixões não chegam, penso que há entre mim e Paulinho não sei quantas coisas entrelaçadas. Naquele momento, descobri que não se deve adiar uma palavra, um sorriso, um olhar, uma carícia. E como me doía não ter dito a ele tudo, não ter feito as confissões extremas. Eu percebia, ali, que nós olhamos tão pouco as pessoas amadas. Quantas palavras calei com pudor de ser meigo, vergonha de parecer piegas? Agora mesmo eu não chorava como queria. Meu Deus, por que havemos de sofrer como Rilke.

Eu queria falar, falar sobre meu irmão. O que me fascinava em Paulo Rodrigues era sua luminosa, ardente humildade. Essa humildade foi, primeiro, uma qualidade vital e, depois, uma virtude literária.

Tenho, na cabeça, quase tudo que ele escreveu. Foi talvez por humildade que, nos primeiros escritos jornalísticos, preferiu usar fatos miúdos, quase imperceptíveis. Num instante, percebemos que era o grande poeta da ocorrência menor, o estilista do fato insignificante. Deixava de lado as tragédias óbvias e enfáticas para trabalhar no lixo do noticiário. E como sabia ver, num vago incidente de tráfego, todo o mistério e dramatismo das coisas.

Está na sua obra romanesca o delicado, o incomparável virtuosismo com que sempre recriou as miudezas da crônica policial. Vejam o seu último, O sétimo dia, que é uma exata, inapelável obra-prima. A rua, a esquina, o boteco, o pau-d’água, tudo tem para ele um apelo encantado. Seus vagabundos são de uma formidável tensão dionisíaca. Sabia, como nenhum outro, dar ao miserável uma dimensão insuspeitada e fremente. O leitor ou crítico pode selecionar, nos seus escritos, uma antologia de pulhas magistrais.

Eu me lembro da nota que fez sobre o episódio da cusparada. Com uma meia dúzia de linhas, transmitiu ao incidente uma tremenda força lírica. Eis o fato: um cidadão, que ia numa “Mercedes-Benz”, teve vontade de cuspir. Verifica, porém, que alguém o olha, no táxi, ao lado. Deu-lhe uma espécie de escrúpulo, cerimônia, pudor ou sei lá. E resolveu esperar das duas uma: ou que a “Mercedes” ultrapasse o táxi ou que este ultrapasse a “Mercedes”. Nem uma coisa, nem outra. Os dois carros corriam juntos e juntos param no mesmo sinal. O passageiro do táxi não tira os olhos. O outro imagina: “Sabe que eu vou cuspir” E pergunta, de si para si: “Cuspo ou não cuspo?” Entupido de saliva, rala-se de uma ira homicida e impotente. A coisa podia acabar em tapa, tiro, talvez em morte.

Paulo Rodrigues fez com o episódio de tráfego, uma página inesquecível, de uma qualidade machadiana. Eu disse Machado e já penso em Drummond. O “Caso da Cusparada” tem a densidade do “Caso do Vestido”.

Às 11 horas de terça-feira, chegam os cinco caixões. Decidimos que não seriam abertos. Eu os vi passando, carregados. E, então, imaginei que ninguém é mais importante, para nós, do que os mortos esculpidos na memória da família.

 

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