Por Iago Filgueiras*
Vladimir Herzog é mais do que um homem assassinado pela ditadura militar brasileira. Seu nome se tornou símbolo de resistência, de luta pela verdade e de um Brasil que ousou se levantar contra os horrores impostos pela repressão.
Sua trajetória, marcada pela fuga do nazismo na Europa, interesse pelo cinema, jornalismo e luta por justiça social, revela as faces de um homem complexo, cujos sonhos foram brutalmente interrompidos. O país que lhe acolheu, foi o mesmo que lhe matou.
Relembrar a história de Herzog significa reafirmar nosso compromisso com a democracia — para que os horrores do passado não permaneçam impunes e jamais se repitam no presente.
Aqui, você vai descobrir quem foi Vladimir Herzog e como seu nome se tornou símbolo da luta contra a ditadura. Além da morte, vamos também celebrar a vida de um homem cujas ambições revelavam a paixão pela arte, o compromisso com o jornalismo e com a justiça social.
Quem foi Vladimir Herzog?
Vladimir Herzog foi um jornalista, cineasta e professor assassinado pela ditadura militar brasileira em 1975.
Nascido na antiga Iugoslávia, Vlado — nome dado pelos pais — se refugiou no Brasil ainda criança e teve uma carreira marcada pelo forte olhar para a realidade social brasileira e pelo compromisso com a cultura. Sua morte, forjada como suicídio, se tornou um marco na luta contra a repressão.
A infância de Vlado e a fuga do nazismo
Filho do casal judeu Zigmund Herzog e Zora Wolner, Vlado Herzog nasceu em 27 de junho de 1937 em Osijek, no antigo Reino da Iugoslávia — região que atualmente pertence à Croácia.
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o território foi controlado por aliados do nazismo e, como em grande parte da Europa, o Holocausto colocou a vida de milhares de judeus em perigo. Quem não foi capturado, precisou conviver com o medo e com o deslocamento forçado. Para a família Herzog, não foi diferente.
Fugindo da perseguição alemã, eles se refugiaram por algum tempo em territórios ocupados pela Itália e, em 1946, Vlado, os pais e um tio finalmente conseguiram chegar ao Brasil. O resto da família morreu durante a ocupação nazista.
Do teatro à notícia
No Brasil, Vlado passou a infância e construiu uma carreira. Sem se adaptar com facilidade à educação formal, foi um aluno comum. Mas, embora a rigidez do sistema escolar não o atraísse, a arte e a cultura despertaram seu interesse.
Ao longo da vida envolveu-se em diversos cursos, revelando uma característica marcante de sua trajetória: o desejo de aprender e se aperfeiçoar. Se dedicou ao inglês e também às artes cênicas, esta última, junto ao jornalismo, lhe acompanhou por toda a vida.
Na juventude, se apaixonou pelo teatro, sobretudo o italiano. Estudou no Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro e chegou a escrever a peça O Rei Berra, inspirada no Teatro do Absurdo — na obra, um rei chamado Berra falava sussurrando e a rainha Sussurra berrava. Também foi ator e, na segunda metade dos anos 1950, integrou o grupo de teatro amador I Guitti, onde conheceu a amiga e atriz Lélia Abramo.
Em 1958, ingressou no curso de filosofia na Universidade de São Paulo (USP), onde conheceu Clarice Chaves, sua futura esposa, que mais tarde se tornaria conhecida como Clarice Herzog.
O ingresso no ensino superior, foi acompanhado também da seleção para integrar a equipe do jornal O Estado de São Paulo. Nesse período, Vlado decidiu assinar suas matérias como Vladimir Herzog, já que considerava seu nome de batismo exótico demais para os brasileiros.
Entre a redação e o cinema
É possível que Vlado tenha chegado ao Estadão por intermédio de alguns colegas, como Lélia Abramo, irmã de Cláudio Abramo, então chefe de redação do jornal.
Como repórter, Vladimir Herzog cobriu eventos marcantes, como a inauguração de Brasília, a campanha e posse de Jânio Quadros e a visita do pensador francês Jean-Paul Sartre ao Brasil. Seu conhecimento em cinema também lhe rendeu pautas na área. Em 1962, foi enviado para cobrir o Festival de Cinema de Mar del Plata, na Argentina.
Foi nesse período que, movido pela paixão pelas artes cênicas, se envolveu em atividades na Cinemateca Nacional e na produção de filmes.
Em 1963, dirigiu seu primeiro filme, Marimbás, como parte de um seminário dado pelo diretor sueco Arne Sucksdorff. A obra retratava a vida de pessoas que se alimentavam das sobras das pescas na praia de Copacabana, mostrando que a crítica social sempre esteve presente em seus trabalhos. Vlado também participou da produção de Subterrâneos do Futebol (1965) e fez parte da equipe de som de Viramundo (1965).
O caminho de Vlado até a TV Cultura
Durante a carreira, Herzog trabalhou em jornal impresso, no rádio e na televisão — revelando sua versatilidade e capacidade técnica. Vlado chegou a trabalhar na extinta TV Excelsior em 1964 e, já no ano seguinte, tentou produzir um documentário sobre o método de alfabetização de Paulo Freire, mas a iniciativa não foi para a frente.
Fluente em inglês e apaixonado por cinema, Vladimir Herzog conseguiu um cargo no serviço brasileiro da Rádio BBC, em Londres. Passou três anos na Europa com a esposa, período em que nasceram seus dois filhos, Ivo e André. Na Inglaterra, produziu boletins de notícias, um programa musical e atuou na divulgação do cinema brasileiro no exterior.

Vlado na redação da BBC em Londres, em 1966. Foto: Acervo Ivo Herzog
Antes de voltar ao Brasil, participou de um curso de produção televisiva na própria BBC, o que despertou seu interesse pela televisão educativa.
Vlado e a família retornaram para terras brasileiras em 1968, pouco antes da promulgação do Ato Institucional Nº5 (AI-5) — que suspendeu o habeas corpus e intensificou a repressão. O cenário que encontrou, se mostrava cada vez mais sufocante para o jornalismo.
Após regressar ao país, trabalhou em diferentes áreas — de agência de publicidade à editoria de cultura da revista Visão, onde já colaborava desde Londres. Ao lado do também jornalista Zuenir Ventura, Vladimir Herzog publicou a matéria “A crise da cultura brasileira”, analisando os efeitos do golpe de 1964 e propondo a ideia de “vazio cultural”.
Ainda nesse período, trabalhou brevemente na TV Universitária da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e, a convite de Perseu Abramo, deu aulas no curso de jornalismo da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), onde trabalhou de 1971 a 1972.
Em 1973, convidado pelo jornalista e amigo Fernando Pacheco Jordão, Vlado foi trabalhar na TV Cultura. Na emissora, coordenou o jornal A Hora da Notícia, onde buscou promover pautas de relevância social, se opondo a propaganda oficial do regime. Em 1974, após a saída de Jordão, deixou o cargo.
Em 1975, Vladimir Herzog se aproximou novamente do cinema e trabalhou em um documentário sobre Antônio Conselheiro e na adaptação para o cinema do livro Doramundo, de Geraldo Ferraz.
No mesmo ano, Vlado se tornou professor de jornalismo na Universidade de São Paulo (USP) e, em setembro, foi contratado como diretor de jornalismo na TV Cultura. Porém, apenas um mês depois — em um dos episódios mais brutais da ditadura militar brasileira —, sua trajetória foi violentamente interrompida: Herzog foi preso, torturado e assassinado pelos agentes do regime.
Quem tem medo dos jornalistas?
Vladimir Herzog foi assassinado pela ditadura militar brasileira, transformando-se em um símbolo da resistência e da luta pela volta da democracia e liberdade de imprensa no país.
Filho de uma família judia arrasada pelo nazismo, Vlado conhecia de perto os perigos do autoritarismo. Ele nunca escondeu seu compromisso com a justiça social, visível tanto no cinema quanto no jornalismo. Em 1965, passou a figurar nas listas de jornalistas considerados inimigos do regime, após assinar um manifesto contra a perseguição política.

Vladimir Herzog sempre se mostrou um jornalista crítico e ligado às pautas sociais. Imagem: reprodução
Movido por um senso de justiça, envolveu-se com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), organização que não atuava na luta armada. Vlado participou apenas de reuniões. À esposa, justificou a escolha:
“É uma questão de momento. A situação política no Brasil é grave. Só há dois movimentos organizados que podem se articular para combater a ditadura – a Igreja e o Partido Comunista. Eu sou judeu. Só tenho uma opção.”
Em 1975, a situação política se agravou. Enquanto o presidente Ernesto Geisel prometia moderação e abertura política, setores da linha-dura militar intensificaram a repressão e a perseguição política.
A vitória do MDB sobre o partido governista Arena nas eleições acendeu o alerta nos militares, que passaram a temer uma infiltração comunista na política e na imprensa. Esse clima de suspeita gerou disputas entre o general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército, e o então governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins.
Vladimir Herzog se tornou alvo perfeito desse contexto. Jornalista comprometido com causas sociais, vinculado ao Partido Comunista Brasileiro e diretor de jornalismo da TV Cultura – emissora pública paulista -, sua prisão e morte serviram aos interesses de um regime que não admitia oposição.
O dia 25 de outubro de 1975
Em meio à intensa perseguição ideológica da ditadura, os jornalistas viraram alvos. Um deles foi Paulo Markun, da TV Cultura, preso em 17 de outubro de 1975. Antes da prisão, Markun conseguiu alertar colegas sobre os nomes dos próximos alvos do regime — entre eles, Vladimir Herzog.
Alguns foram presos antes de receber o aviso, outros fugiram. Vlado escolheu ficar. Convocado a prestar esclarecimentos, Herzog foi voluntariamente ao DOI-CODI, no bairro do Paraíso, em São Paulo, em 25 de outubro de 1975.
Uma vez preso, Vladimir Herzog trocou de roupa e vestiu o macacão entregue aos detidos. Outros jornalistas — que também estavam presos — testemunharam o sofrimento de Vlado enquanto ele era barbaramente torturado pelos militares durante a manhã. À tarde, o silêncio.
Aqueles que estavam detidos na sede do DOI-CODI puderam deduzir o que havia acontecido: aos 38 anos, Vladimir Herzog estava morto.
O Exército tentou forjar um suicídio — prática recorrente do regime para ocultar seus crimes. Porém, a foto usada para sustentar essa versão revelava o contrário: Vladimir Herzog aparecia enforcado por um cordão usado como cinto, mas a peça não fazia parte do uniforme dos presos. Além disso, ele estava com os pés no chão, o que tornava a tese de suicídio impossível.
O cinismo era regra em uma ditadura que agia com a certeza da impunidade — o que ainda se afirma verdade no presente.
Uma morte que mudou a história
A morte de Vladimir Herzog teve um impacto profundo na história brasileira e sua repercussão foi decisiva para fortalecer a luta pela redemocratização.
Judeu, Vlado deveria ser enterrado conforme a tradição, que impõe ritos diferentes em casos de suicídio, incluindo o sepultamento fora das áreas comuns do cemitério. Mas quando a Chevra Kadisha — grupo responsável por preparar os corpos conforme a tradição judaíca — recebeu o corpo, o rabino Henry Sobel percebeu os sinais de tortura.
“Vi o corpo de Herzog. Não havia dúvidas de que ele tinha sido torturado e assassinado”, afirmou Sobel. Em resposta, decidiu sepultá-lo no centro do Cemitério Israelita do Butantã. Foi um gesto simbólico que desmentiu, de forma pública e irreversível, a farsa sustentada pela ditadura.
O ato inter-religioso
A missa ecumênica de Vladimir Herzog, realizada dia 31 de outubro de 1975 na Catedral da Sé, reuniu mais de 8 mil pessoas e se tornou um marco da resistência à ditadura. O ato inter-religioso contou com a presença do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, do rabino Henry Sobel e do reverendo Jaime Wright.

O ato inter-religioso em homenagem a Vladimir Herzog contou com a presença de mais de 8 mil pessoas e se tornou um marco da luta contra a ditadura. Foto: reprodução
Foi a primeira grande manifestação pública após o AI-5, que intensificou a repressão no país. Artistas, jornalistas e intelectuais se uniram para homenagear Vlado — entre eles o pensador francês Michel Foucault, que estava em São Paulo para ministrar uma aula na USP.
Apesar dos bloqueios ordenados pelo secretário de segurança Erasmo Dias em toda a cidade, muita gente caminhou até a Sé. Ao fim da cerimônia, carros sem placas lançaram bombas de gás contra a multidão. Um retrato de um regime que negava até mesmo o direito ao luto.
A repercussão entre os jornalistas
O clima entre os jornalistas era de medo, mas também de resistência. Mesmo diante da versão oficial, muitos sabiam que havia algo de errado com a morte de Herzog.
Muitas contradições estavam evidentes na forma como o caso foi conduzido pelos militares e era preciso se organizar para questionar. Mais de 460 profissionais da imprensa assinaram um abaixo-assinado exigindo explicações. O documento foi entregue aos militares pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e publicado no jornal Unidade e em um anúncio pago no Estado de S. Paulo.
A luta de Clarice Herzog

Vladimir Herzog e Clarice Ribeiro Chaves se casaram em 1964. Foto: Acervo Vladimir Herzog
Após a morte do marido, Clarice Herzog, precisou lidar com o trauma da perda ao mesmo tempo em que encontrava forças para explicar aos filhos, Ivo e André, o que havia ocorrido com o pai. No meio de tudo isso, ousou buscar justiça e responsabilizar o estado brasileiro pela morte de Vladimir Herzog e mesmo com repressão e ameaças, entrou com uma ação judicial.
Em 1978, em uma decisão histórica, o juiz federal Márcio José de Moraes condenou o Estado pela morte de Vlado. Foi a primeira vez desde 1964 que o Judiciário se opôs aos militares.
A luta não parou. Em 2009, Clarice levou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que resultou na primeira condenação internacional ao Brasil por crimes da ditadura, criando um precedente importante para as famílias de centenas de mortos e desaparecidos políticos.
Apenas em 2013, o atestado de óbito de Vladimir Herzog foi corrigido. Com a medida, o suicídio deixou de constar como causa da morte, sendo finalmente substituído pela verdade: Vlado foi morto vítima da violência do Estado brasileiro.
Clarice perdeu o marido aos 38 anos, mas tem dedicado uma vida inteira à busca pela justiça e pela preservação da memória de Vladimir Herzog. A morte de Vlado, há 50 anos, ainda se desdobra na Justiça. Apenas em 2025, Clarice conseguiu uma sentença favorável ao pagamento de uma pensão vitalícia pela morte do marido.
Homenagens a Vladimir Herzog
Vladimir Herzog é uma figura marcante do imaginário nacional. Em livros de história, ele segue ecoando o que por muito tempo a ditadura tentou negar. Por isso, até hoje seu nome estampa placas de ruas, praças, nomes de centros acadêmicos e diversos outros espaços, mostrando que a memória dele resiste.
Um desses casos é a Praça Memorial Vladimir Herzog, localizada em São Paulo. O espaço funciona como um ponto de cultura a céu aberto. Com atividades frequentes que buscam resgatar o legado de Herzog e relembrar sua importância na resistência e na luta pela redemocratização.
Além disso, desde 2009, o Instituto Vladimir Herzog (IVH) celebra a vida e o legado do jornalista. A organização sem fins lucrativos tem como objetivo trabalhar com a sociedade pela defesa dos valores da democracia, dos direitos humanos e da liberdade de expressão.
Contra o silêncio, a memória
Conhecer a história de Herzog é mais do que revisitar o passado. É entender como a ditadura militar foi capaz de interromper sonhos, silenciar vozes e destruir famílias. Sua morte, em 1975, foi o estopim para uma onda de mobilizações que ousaram exigir a redemocratização e o fim da violência.

Além de um mártir, Vladimir Herzog foi um símbolo da luta por justiça social. Foto: Acervo Vladimir Herzog
Mas Herzog foi mais do que uma vítima da repressão. Foi filho, pai, marido, cineasta, jornalista e judeu. Falava diversas línguas, defendia o cinema nacional e acreditava no papel da cultura como ferramenta de transformação social. Tinha planos, convicções e desejos. A ditadura lhe tirou isso — mas não deixaremos que tire também sua memória.
Hoje, lembrar Vladimir Herzog é também um ato político. Sua história nos recorda que a luta por justiça, democracia e direitos humanos não ficou no passado. Reconhecer os horrores da ditadura é afirmar diariamente que valores como a liberdade e a justiça social são inegociáveis.
Preservar o nome de Vlado é garantir que ele não seja lembrado apenas por sua morte. A ditadura arrancou seu futuro — mas nós podemos, e devemos, manter sua memória viva, como um símbolo de luta por um país democrático.
*Estagiário sob supervisão de Leila Cangussu
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