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Valdemar Figueredo (Dema)

Idealizador e coordenador desde 2017 do Observatório da Cena Política Evangélica pelo Instituto Mosaico (www.institutomosaico.com.br). Pós-doutorando em sociologia pela USP. Doutor em ciência política (antigo IUPERJ, atual IESP-UERJ) e em teologia (PUC-RJ). Pastor da Igreja Batista do Leme e da Igreja Batista da Esperança, ambas na cidade do Rio de Janeiro.

Autismo e esporte: a escolha de ficar de fora da competição

Jogos Paralímpicos Paris 2024 e a rotina em casa
03/09/2024 | 07h16

Os Jogos Paralímpicos Paris 2024 começaram em grande estilo. Esta edição ocorrerá entre 28 de agosto e 8 de setembro. Segundo o comitê organizador, o evento pretende chamar atenção por meio do esporte para a inclusão dos deficientes físicos e intelectuais.

As deficiências não podem ser determinantes para paralisar ou isolar os indivíduos. Quanto aos estigmas sociais, estes sim produzem efeitos paralisantes. Portanto, os esportes cumprem um caráter educativo primordial para que as sociedades promovam ações efetivas mais inclusivas para as pessoas com deficiência.

Dizem que autistas enxergam o mundo de uma forma diferente. Sem querer entrar no mérito científico ou debate filosófico que essa frase suscita, quero tomá-la como razoável, fugindo de uma visão romantizada que fala da excepcionalidade da pessoa com autismo como se ela fosse um gênio, ou um anjo.

Fujamos dos preconceitos que reduzem os neurodivergentes tanto à condição de retardados incapazes, como à condição de seres superiores com superpoderes excepcionais. Para tanto, recorramos ao esporte. O que direi aqui sobre a condição das pessoas com autismo merece adaptações específicas para pensar diversas outras condições das pessoas com deficiência.

O caso Messi

Lembram que rolou pelas redes sociais o boato de que o Messi era autista? Ele estava no auge da carreira. Evitava o contato visual, parecia falar baixinho consigo mesmo, era muito tímido e não estabelecia laços sociais profícuos com a comunidade em torno da bola. O hiperfoco seria o sintoma mais contundente do autismo do Messi, capacidade para se concentrar e realizar movimentos imprevisíveis.

Havia até certa euforia interessada em diagnosticar o então melhor jogador do mundo no Transtornos do Espectro Autista (TEA). Sua genialidade viria justamente da sua excepcionalidade. Um fora de série.

Quem muito repercutiu esses argumentos foram aqueles que emocionalmente estavam envolvidos com o TEA. Essas pessoas não queriam dissimular ou se colocar na condição de negacionistas da ciência, queriam muito acreditar que onde a sociedade via deficiência, existia na verdade superpoderes. Difundiam pelas redes sociais que o camisa 10 do Barcelona seria o melhor garoto-propaganda da causa.

Caso a pessoa com autismo enxergue mesmo o mundo de uma forma diferente, ela terá uma visão excepcional na prática do esporte. Veja que o uso do vocábulo “excepcional” não evoca sentido de superioridade ou inferioridade, apenas de diferença.

Neurodivergentes são atletas atípicos

Sincronizar movimentos com uma equipe pode ser um desafio grande para muitos que estão na condição do TEA. Quando os pais querem iniciar seus filhos nos esportes, modalidades com regras complexas que exijam interações múltiplas, podem exigir repertórios de sociabilidade sofisticados, além dos aspectos fisiológicos e psicomotores implicados.

A questão não é necessariamente se as pessoas com TEA vão bem ou mal nos esportes. Às vezes, tem mais a ver com as expectativas dos que assistem do que com as habilidades da pessoa com TEA na prática da modalidade esportiva.

A forma diferente de ver e sentir o mundo coloca em questão nossos valores, regras e padrões que se constroem das figuras de vencedores e perdedores.

Por exemplo, não é incomum os atletas de alto rendimento e altíssimas expectativas menosprezarem a medalha de prata. Mesmo em edições de Olimpíadas ou Copa do Mundo, já vimos atletas no pódio recebendo a medalha da segunda colocação tirá-la rispidamente do pescoço como se quisessem escondê-la com vergonha.

É um tipo de mentalidade que supõe que apenas a conquista do topo do pódio merece a comemoração. Atletas que foram adestrados a competir para ganhar, nada além do prêmio máximo as satisfaz. A pretensão de ser o melhor leva a frustração quando constata que está entre os melhores.

Expectativas e frustrações dizem muito ao nosso respeito. Nos Jogos Paralímpicos, vale bem mais as conquistas de superação de si do que a superação do outro. Coisa que as sociedades formadas em torno do dinheiro desconhecem. Na ética capitalista, os vencedores recebem os seus méritos após competirem e superarem os seus adversários. Os mais aptos, que mais se adaptaram às regras do jogo, sobem ao pódio.

Por natureza, neurodivergentes são pessoas atípicas. Por escolha própria ou por exclusão alheia, estão fora do jogo. Tratando-se de pessoas no TEA, muitas não entendem a lógica da competição do mundo dito civilizado. Isso não chega a ser um transtorno, mas frustra bastante os expectadores mais próximos (pais, irmãos, cuidadores, professores, avós, etc.) que gostariam de vê-los na arena social disputando protagonismos e subindo aos pódios do reconhecimento social e econômico.

O uso do esporte para inclusão dos deficientes físicos e intelectuais deveria gerar reflexões sobre a condição de vida das pessoas classificadas como neurotípicas (funcionamento cerebral enquadrado nas expectativas culturais da sociedade).

Quais as regras das nossas interações? Elas são razoáveis para quem? Os nossos valores nos desumanizam? As sociedades movidas pelas competições e prêmios para os mais aptos geram pessoas mais saudáveis física e emocionalmente?

Talvez, a escolha de não participar do jogo conforme ele é jogado seja um traço de lucidez, e não de esquisitice. Os Jogos Paralímpicos colocam-nos diante de questões existenciais.

Uma anedota familiar

A rotina de acordar cedo para levar os filhos à escola. A aventura de cumprir o horário sem margem para o atraso. Entre o Luca e o Pedro, diferença de sete anos. Como eu, o Luca acorda silencioso e faz o que precisa ser feito pelo sentido do dever. Como a mãe, o Pedro acorda elétrico falando rápido e alto, movido pelas pulsões.

O Luca está no espectro autista.

Criei o hábito de não usarmos o elevador. Quatro lances de escada logo pela manhã trariam benefícios físicos perenes.

Determinado dia, acho que o Luca com 14 anos e o Pedro com 7, resolvi estimular a disputa entre eles porque o horário estava apertado e temia atrasar. Quem tocasse primeiro na porta da portaria era o vencedor. Antes de finalizar as instruções, o Pedro já estava agitado querendo abrir a porta de casa. Quanto ao Luca, me olhava dizendo com os olhos: “é sério?!”

Começou a corrida. Dei pressão para estabelecer um ritmo razoável. Entre o terceiro e segundo andar corri na frente. Depois desacelerei para deixá-los passar. Praticamente juntos chegamos à portaria. Mas, segundo as regras, venceria quem tocasse primeiro a porta. Luca já havia se dado por satisfeito ter corrido pelas escadas conforme o desafio. O Pedro não, deslizou ofegante no hall de entrada do prédio e gritou com o braço esticado e mão na porta:

— Primeiro!

Eu continuei na brincadeira. Também toquei na porta e disse:

— Segundo!

Foi aí que de forma inabalável o Luca tocou na porta, conforme as nossas regras, e falou sem qualquer afetação:

— Último!

Já na calçada, o Pedro soltou uma gargalhada da atitude inusitada do irmão. Não era riso de galhofa, mas de irmandade. Quanto ao Luca, ficou sem entender o motivo do riso. Sério estava, sério seguiu naquela manhã para a escola.

Ele opera num modo diferente. Luca participa do jogo não para superar o outro, mas tão somente para chegar à porta e abri-la para conseguir cumprir a sua rotina. Talvez o esporte e os desportistas tenham perdido essa dimensão humana, seja pela pressão dos patrocinadores ou pela pressão dos expectadores.

Eu e o Pedro aprendemos naquela manhã que o nosso arqueiro zen vive acertando o alvo, o nosso coração.

Pódio onde só cabem três? Para o Luca, no seu modo diferente de enxergar o mundo, não faz sentido. A propósito, para ele, nenhum problema em ser o último.

Para além dos atletas Paralímpicos

Existem pessoas com deficiências físicas que precisam todos os dias, e para o resto das suas vidas, praticar esforços dobrados para conseguirem autonomia e serem consideradas funcionais. Como não as reconhecer como vitoriosas e bem-sucedidas? Jamais suas performances deveriam ser comparadas com outras pessoas. Partem de uma condição física e seus desempenhos deveriam ser medidos tendo como parâmetro a própria realidade.

Quanto aos neurodivergentes, nos ajudam a desnaturalizar as normas. Normas são invenções humanas que podem eventualmente ser desrespeitosas com a pessoa na sua singularidade. Nas relações de poder vigentes, os mais poderosos são aqueles que conseguem fazer vigorar as suas regras e o seu padrão de normalidade.

Em termos médicos, há pessoas na condição de deficiência intelectual com importantes comprometimentos cognitivos. As tais não podem ser tratadas como inválidas, incapazes ou inúteis. Muitas dessas lutam todos os dias para superar os seus limites. Apropriadamente estimuladas, seja pela arte ou pelo esporte, são capazes de elaborar respostas singulares, originais, atípicas e surpreendentes. Ou seja, para além dos nossos limites de compreensão enquanto espectadores acostumados com padrões.

 

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