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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

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Bolsonaro e seu legado

Imobilismo é o DNA de um Congresso que existe para sabotar qualquer projeto popular
17/02/2024 | 07h42

Bolsonaro está na berlinda já há algum tempo, mas agora os efeitos devastadores da delação de Mauro Cid começam a se manifestar. A sua decisão de convocar manifestação em São Paulo mostra, antes de tudo, o seu desespero. Ele pretende uma última cartada que possa viabilizar uma mudança da opinião pública a seu favor. Jogada arriscada de quem sempre joga no limite. A chance de desgaste é muito maior que a possibilidade de mudança do clima político que já conta com sua prisão. Aliás, ele já perdeu boa parte de sua liberdade de ir e vir ao ter o passaporte apreendido.

Muito estranha é a posição de vários juristas, muito especialmente aqueles que defendem o presidente golpista em nome da “pacificação da vida nacional”. Aqui reside um engano profundo. A pacificação de uma sociedade, do mesmo modo que acontece com o indivíduo, não se dá pelo “esquecimento”, mas sim pela “lembrança”. E aqui reside um dos maiores perigos deste processo contra Bolsonaro que é o de se limitar à sua figura pessoal – ainda que isso seja um grande avanço – e não avançar no caminho do aprendizado político e institucional. Seria mais uma chance perdida.

Bolsonaro é, afinal, fruto de uma contrarrevolução popular e silenciosa que, das cinzas da teologia da libertação, ao longo dos últimos trinta anos, encontrou um caminho religioso para as classes populares que une dois polos: um “ambiguamente positivo” que promove a adaptação do pobre ao mercado capitalista, enfatizando a disciplina e o autocontrole a serviço do espírito de competição e da meritocracia; e, um outro, abertamente negativo, que tende a mitigar, distorcer e reprimir a participação popular ao retirar o foco político no mundo profano, em favor de uma eficácia exclusiva da dinâmica do além mundo, dos espíritos, diabos e deuses do antigo testamento.

Nesse contexto, não existe causalidade política dos eventos cotidianos já que tudo é uma guerra santa entre Deus e o diabo e suas manifestações. Não há nada que possamos fazer na prática social e política da vida a não ser nos livrar dos nossos maus espíritos. A Igreja Universal, a que mais cresce no país, é a que mais espelha este estado de coisas, embora essa visão de mundo esteja presente na maioria das denominações importantes do mundo evangélico.

Cada vez mais empenhados em ganhar o mundo político e os corações e mentes da população, esse pessoal teve em Bolsonaro seu líder maior capaz de unir quase todos em um caminho comum. Esse é o legado mais difícil de se lidar, inclusive pela cegueira total do campo democrático e de “esquerda” acerca da importância de disputar as ideias dominantes. Burrice, aliás, que a extrema direita não tem. A desconstrução moral de Bolsonaro poderia funcionar como um estopim para uma mudança do imaginário popular. Mas é improvável que isso aconteça já que alguma explicação alternativa sobre o mundo social teria que existir e ser ofertada ao público.

O outro legado, quase tão difícil quanto o primeiro, se refere à herança institucional. Embora tenha começado com Temer, foi com Bolsonaro que o Congresso melhor desempenhou o seu papel irresponsável – nos dois sentidos do termo – de conduzir o país a lugar nenhum. Ou seja, manter tudo como está a qualquer custo. O imobilismo é o DNA mais importante de um Congresso que existe para sabotar qualquer projeto popular sediado no Executivo. Isso tudo possibilitado pela venalidade e pela fragmentação de interesses. Como lidar com essa sinuca de bico? Quem vai repor o Congresso no seu devido lugar?

A outra herança de Bolsonaro, que também começou com Temer, o que mostra o protagonismo da elite por trás dos dois, é ter chamado de novo os militares para a vida política, o que só pode significar golpismo. Bolsonaro levou essa aventura ao paroxismo, confiando que, quando precisasse, agiriam em seu favor. E quase aconteceu, como vimos. E teria acontecido muito provavelmente se Trump fosse presidente. Os militares reticentes ao golpe o foram por um cálculo de risco: afinal, nunca houve um golpe de Estado no Brasil sem apoio americano. Para forças armadas formadas na ideia da defesa hemisférica sob comando americano, um golpe sem o consentimento americano seria uma aventura muito arriscada.

Essa é uma boa briga a ser lutada. Tomara que o processo que investiga Bolsonaro puna exemplarmente a secular tradição golpista dos militares. É urgente subordiná-los ao poder civil e dar a eles um ofício útil para o país. Uma reforma dos currículos e do ensino militar é imperioso. Mas, também esta, é outra chance aberta que corre o risco de não ser aproveitada. Em parte, por falta de coragem, mas, também, por falta de visão política.

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