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Lindener Pareto

Professor e historiador. Mestre e Doutor pela USP. Professor de História Contemporânea e Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). É apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação científica de História e historiografia nos canais do ICL.

Brasil: outro retrato em branco e preto?

Hoje, dia 8 de dezembro, quase um ano depois, voltamos a perguntar: cadê o novo retrato do Brasil?
08/12/2023 | 05h00

Brasília, 1 de janeiro de 2023: uma multidão em vermelho, e em festa, lota a Esplanada dos Ministérios para presenciar a posse do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Desde o golpe midiático, jurídico e parlamentar que tomou o país de assalto em 2016 que não se via tamanha euforia e esperança na recondução do Brasil ao Estado Democrático de Direito, às políticas públicas e sociais, à normalidade dos ritos republicanos conquistados, a duras penas, a partir da Constituição de 1988. Exatamente por isso, em meio à euforia popular, uma cena se eternizou de imediato: a subida da rampa do Palácio do Planalto. Todos sabíamos que diante da “fuga” de Jair Bolsonaro para os EUA, o protocolo de subida da rampa e a passagem da faixa presidencial teriam de ser revistos. Àquela altura, especulações de todo tipo dominaram a mídia e o imaginário nacional.

No entanto, os historiadores existimos para lembrar que nem tudo é tão novo quanto parece. Não era a primeira vez que um ex-presidente se recusava a passar a faixa presidencial. Numa história marcada por golpes, ressentimentos e autoritarismo, o Brasil viveu alguns episódios do tipo. No início da República, em 15 de novembro de 1894, o Marechal Floriano Peixoto, militar da “República da Espada”, não passou a faixa ao primeiro presidente civil, e eleito por voto direto, de nossa história: Prudente José de Morais Barros (Prudente de Morais). Contrariado com a passagem do cargo para um civil, Floriano não compareceu ao evento e muito menos mobilizou o staff presidencial para o rito de passagem. Prenúncio autoritário do “Partido Militar” sempre se recusando a aceitar civis no comando do país? Quase cem anos depois, em 1985, o General João Batista Figueiredo, último presidente da Ditadura Militar (1964-1985), se recusou a passar a faixa a José Sarney, alegando – entre outras coisas – que Sarney era um “carreirista”, “puxa-saco” e “traidor”. Também profundamente contrariado pela transição de poder aos civis, Figueiredo – que preferia o cheiro de seus cavalos ao cheiro do povo – saiu do Palácio do Planalto pela porta dos fundos.

Mesmo em momentos de maior estabilidade das instituições democráticas, como no período de 1994 a 2014, o rito de reconhecimento da vitória do adversário político nos levou a graves quadros de crise. Lembremos que o protocolo democrático foi por água abaixo desde que o então senador Aécio Neves (PSDB), concorrente de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais de 2014, contestou a vitória de mesma e abriu a Caixa de Pandora para os demônios de toda a história nacional, (re) pavimentando o caminho do poder para sujeitos que vieram do porão da ditadura (1964-1985) e para oportunistas de todo tipo. Ao romper o frágil protocolo democrático brasileiro, o neto de Tancredo Neves fez com que os brasileiros fôssemos, mais uma vez, castigados pelas múltiplas temporalidades de uma história marcada por uma violência sem igual, por “tiro, porrada e bomba.”

Já em janeiro de 2023, a história parecia se repetir como farsa. Jair Bolsonaro não reconheceu publicamente a vitória de Lula e passou a fazer aquilo que caracterizou toda a sua trajetória como homem público: semear o caos. Sair do Brasil e não passar a faixa era certamente o menor dos problemas. Tratava-se agora de reinventar o protocolo e contornar parte da farsa. E tal foi a resposta de Lula e de Rosângela Lula da Silva, a nova Primeira-Dama do Brasil, que conduziu um protocolo inusitado e que, comparado aos padrões anteriores, foi absolutamente subversivo. O povo brasileiro deveria passar a faixa ao novo presidente. Sob o sol abrasador do Planalto Central do Brasil e embalado pelas bachianas de Heitor Villa-Lobos, Luiz Inácio Lula da Silva subiu a rampa do Planalto “como nunca antes na história desse país”. A voz da narradora oficial do evento anunciava: “Na subida da rampa, o Sr. Presidente da República é acompanhado por cidadãos que simbolizam a riqueza e a diversidade do povo brasileiro.” Pois foi o que se viu.

Janja segurava no colo a cadelinha Resistência, símbolo da “Vigília Lula Livre” em Curitiba. Junto a eles, mas sem o protagonismo dos demais, um sorridente (como nunca antes em sua trajetória política!) Geraldo Alckmin e sua companheira Lu Alckmin. Protagonizando a cena ao lado de Lula: o povo brasileiro. Francisco, de 10 anos, morador de Itaquera, Zona Leste de São Paulo. Menino corintiano, campeão de natação e admirador de Lula. Ivan Baron, do Rio Grande do Norte, representando os brasileiros portadores de deficiência. Baron enfrenta paralisia cerebral desde os três anos de idade, devido a uma meningite viral e se tornou uma figura proeminente na luta contra o capacitismo, que é a discriminação com base em deficiência. Weslley Rodrigues Rocha, de 36 anos, metalúrgico do ABC Paulista, na Grande São Paulo, terra cara à Luiz Inácio, onde se fez e foi feito líder operário. Murilo de Quadros Jesus, 28 anos, morador de Curitiba, formado em Letras, professor de português/inglês, oriundo do ensino público e de universidade pública criada nos Governos de Lula e Dilma. Jucimara Fausto dos Santos, cozinheira que esteve presente na “Vigília Lula Livre”, em Curitiba, onde desempenhou um papel essencial. Durante um período de 10 meses dedicou-se a “fazer do trigo o milagre do pão”, que não apenas alimentou as pessoas da Vigília, mas o próprio presidente Lula, preso na cela da Polícia Federal de Curitiba, onde ficou por 580 dias. Flávio Pereira, 50 anos, artesão nascido em Pinhalão, no norte do Paraná, também esteve na “Vigília Lula Livre” e ajudou a equipe que estava no local com atividades gerais no cotidiano do acampamento. Aline Souza, 33 anos, ativista, catadora de recicláveis, uma das lideranças do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis e Diretora da Central de Cooperativas de Materiais Recicláveis do Distrito Federal (CentCoop). Depois da faixa passar de mão em mão, expurgando o sangue derramado nos 4 anos (ou 500?) anteriores, Aline Souza – mulher negra, filha e neta de catadoras, trabalhadora – foi quem, entre sorrisos e lágrimas, “ungiu” Lula com a faixa presidencial.

Um dos retratos mais emblemáticos da história do Brasil estava absolutamente eternizado. Um retrato que começou há mais de 500 anos atrás e que parecia, naquele já distante janeiro, romper com séculos de colonialismo e genocídio. Hoje, dia 8 de dezembro, quase um ano depois, a esquerda que não teme dizer o seu nome – e o Cacique Raoni –  voltamos a perguntar: cadê o novo retrato do Brasil?

Lula sobe a rampa do Planalto com o Povo Brasileiro (Tânia Rego – Agência Brasil)

Enquanto isso, como dizia o maestro soberano, o nosso Brasil não é para principiantes. Portanto, eu canto com ele e, mais uma vez, com Elis:

Lá vou eu de novo como um tolo
Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer
Novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra lhe dizer que isso é pecado
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado e você sabe a razão
Vou colecionar mais um soneto
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração

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