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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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Cais do Valongo, régua e compasso para o mundo

A história que ainda precisa ser contada
22/03/2024 | 10h03

Desde sempre a tragédia está no dia a dia do Errejota, da Cidade Maravilhosa, do “Rio 40 graus, cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”, da São Sebastião do Rio de Janeiro, esta urbe erguida entre praias, morros, pântanos, com sangue do extermínio da população indígena e desembarque de multidões de gente negra para escravização. Componentes que forjaram um território constantemente em guerra dentro de um cenário belíssimo. O Rio de Janeiro, já diria Gilberto Gil, continua lindo, mas aqui quem deu régua e compasso foi o Cais do Valongo.

Esta semana, mais especificamente na última quarta-feira, 20/03, uma notícia boa afagou a esperança em dias com mais conhecimento do passado que não queremos ver replicado no futuro, pois a Fundação Getúlio Vargas e a prefeitura carioca lançaram a Cátedra Pequena África, que será ministrada na Casa Escrevivência, de Conceição Evaristo, que está encravada ali mesmo, no local que Heitor dos Prazeres nomeou como uma miniatura do continente africano.

As pedras daquele cais foram o primeiro solo brasileiro pisado por pessoas negras sequestradas para escravização em quantidades absurdas (de 500 mil a um milhão) e de pontos tão distintos do continente africano quanto o número de territórios na época utilizados para este fim. Aliás, por este motivo o lugar é patrimônio mundial pela UNESCO. Ele é um marco para o país e para o planeta e há muito tempo merecia uma imersão séria e que pensasse todo o conjunto de saberes que ele abrange, para além das efemérides e atos representativos.

“Boutique de la Rue do Val-Longo”, litografia de 1835 do pintor francês Jean Baptiste Debret (1768–1848): lugar se tornou patrimônio mundial pela UNESCO

O Brasil como o conhecemos não existe sem o Valongo, esta grande encruzilhada do mundo negro em terras americanas que juntou idiomas, religiões, costumes, ciências, filosofias. Uma riqueza incomensurável e pouco conhecida por uma grande parcela de país ignorante de si e que anda em círculos porque, como efeito colateral do desconhecimento sobre o passado, caminha repetindo erros e eternizando morte e exclusões.

Diário do Rio de Janeiro, 1830. Foto: Hemeroteca Biblioteca Nacional

No entanto, há outra porção de Brasil. Aquela que sabe exatamente como e porque aconteceu o crime da escravidão, que se beneficiou e, todavia, colhe dividendos deste mesmo passado. Para estes e estas tudo deu muito certo. Então, dizem, sigamos em frente sem pensar! Por fim, temos um terceiro grupo, feito daqueles e daquelas que sabem e que não apenas sofrem diretamente as consequências da brutalidade escravocrata até nossos dias, como enxergam perfeitamente o tanto que estão na base de todas as nossas principais mazelas nacionais. O Conselho Consultivo da cátedra da FGV é formado por oito profissionais que exatamente pertencem a este terceiro time (ver no final).

Quando escrevi em 2016/17 o romance “O crime do cais do Valongo”, lançado em 2018 pela editora Malê, deparei-me com um lugar semelhante a um rizoma, ou seja, uma raiz que se aprofundou no solo nacional em direção ao sul, centro-oeste, para os outros pontos no sudeste e até para países da América do Sul. Um lugar brutal, com fugas constantes, vendas de corpos de todo gênero, toda condição de saúde precária, ruas sempre alagadas, sem calçamento.

Diário do Commércio — 1840. Foto: Hemeroteca Biblioteca Nacional

Um local de conflitos que saltam aos olhos 200 anos depois, como num anúncio que busca quem despejou propositalmente um tonel de fezes (os tigres carregavam excrementos) em frente a uma residência. Valongo, Doença, Violência e Morte eram irmãos saídos de pais com sobrenome Escravidão.

Diário Commercial — 1840. Foto: Hemeroteca Biblioteca Nacional

A Pequena África, apesar da insana realidade saída do Valongo, transformou-se num grandioso cadinho cultural, num local de florescimento e de encantamentos. A região que deu ao mundo o samba e uma resistência abrigada e alimentada com angus nas “casas de zungus”, não esquece seu passado. Jamais poderia. O que as pedras do cais pedem é que afirmemos todos os dias a humanidade dos pés que ali deixaram suas pegadas.

Jean Baptiste Debret. Angu

Viva a Cátedra Pequena África!

Comitê consultivo

  • Ayrson Heráclito — Artista visual, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e curador.
  • Benedito Gonçalves — Ministro do Superior Tribunal de Justiça.
  • Conceição Evaristo — Professora e escritora.
  • Dione Oliveira Moura — Professora e diretora da Faculdade de Comunicação (FAC) da UNB..
  • Jurema Werneck — Médica, doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ), Diretora-Executiva da Anistia Internacional no Brasil.
  • Muniz Sodré de Araújo Cabral — Sociólogo, jornalista, professor da UFRJ e escritor.
  • Sonia Guimarães — Cientista, pesquisadora, professora, presidente da Comissão de Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão da Sociedade Brasileira de Física.
  • Thiago Amparo — Professor da FGV Direito SP e da FGV RI

Gestão tríade e caminhada como marco inicial

O Comitê Consultivo da Cátedra definiu que o primeiro ano do programa da iniciativa terá uma gestão tríade. As catedráticas convidadas são:

  • Inaicyra Falcão, professora e cantora lírica.
  • Leda Maria Martins, poetisa.
  • Rosana Paulino, artista plástica.

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