Por Jeniffer Mendonça — Ponte Jornalismo
Carlos* passou 133 dias preso pela acusação de tráfico de drogas até ser absolvido em janeiro de 2023 após uma saga do sistema de justiça atrás das câmeras corporais dos policiais que participaram da abordagem. A Polícia Militar deu duas desculpas diferentes sobre a demora na entrega das gravações. Primeiro, disseram que o único policial com acesso às senhas para disponibilizar as imagens estava de férias e só voltaria no mês seguinte. Depois, alegaram não ter conseguido fornecer os vídeos porque o fórum estava fechado — coincidentemente, no período de recesso de final de ano do judiciário em que os tribunais atuam em escala de plantão.
O batalhão ainda reclamou da insistência com que a juíza do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) solicitou as gravações. Ela demonstrou “estranheza” de que apenas uma pessoa tivesse acesso ao material na corporação. E que, como o processo tramita de forma digital, não faria sentido a PM ir até o fórum sabendo que durante o final de ano o local fica em recesso.
Somente quando a magistrada ameaçou acionar a Corregedoria da corporação, sob pena de desobediência caso os registros não fossem fornecidos em até 72 horas — considerando que a Defensoria Pública tinha feito o pedido em novembro de 2022 e Carlos estava preso provisoriamente (ou seja, aguardando julgamento) desde setembro daquele ano —, é que parte do material chegou.
A PM enviou as imagens em janeiro de 2023, mas apenas as imagens da câmera de um sargento que ficou aguardando em frente à viatura e não participou diretamente da abordagem. A PM afirmou não ter encontrado as gravações dos demais. Nesse único registro, Carlos já aparece sendo conduzido pelos soldados e a mochila dele é revistada, de onde nada de ilícito é retirado, apesar de os agentes terem dito que o homem portava uma mochila de drogas.
Com isso, a magistrada absolveu Carlos pelas contradições nos depoimentos dos policiais e pelas imagens fornecidas.
O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), que tinha pedido a condenação de Carlos mesmo com a única filmagem disponibilizada e se baseando apenas na palavra dos PMs, resolveu não recorrer da sentença. No processo, não consta punição à PM pelos 41 dias de atraso no envio do vídeo — ainda por cima incompleto.
Câmeras: Narrativa policial
Esse foi um dos cenários encontrados pelos pesquisadores Maria Gorete Marques de Jesus, da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e associada Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), e Fabio Lopes Toledo, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP). Eles analisaram 28 processos de tráfico de drogas no TJ-SP, iniciados em 2022, que traziam alguma menção sobre a presença de câmeras nas fardas dos policiais envolvidos.
Esse levantamento preliminar, disponibilizado com exclusividade para a Ponte Jornalismo, é um desdobramento da pesquisa Body Cams e os operadores do Direito: solicitação de imagens das ações policiais na justiça de São Paulo, ainda sem data prevista para lançamento e que não trata unicamente do crime de tráfico de drogas. O estudo contém ainda a participação de pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do NEV-USP.
De acordo com Maria Gorete, o objetivo de analisar o uso das câmeras corporais em processos de tráfico de drogas foi verificar como o sistema de justiça passou a utilizar — ou não — esse tipo de equipamento, já que pesquisas anteriores identificaram que nesse tipo de crime existe uma prevalência de promotores e juízes basearem-se apenas na narrativa policial para acusar e condenar alguém.
“As câmeras permitem essa possibilidade de outras narrativas, principalmente porque a gente não tem outras testemunhas fora os policiais”, explica a pesquisadora.
Para ela, o fato de terem sido encontrados poucos processos com informação de solicitação de câmeras corporais em 2022 supõe uma falta de familiaridade ou até desconhecimento do programa da PM. Além disso, também não existem diretrizes específicas em São Paulo de como os promotores e magistrados devem seguir — demonstrando que o tema é tratado de forma discricionária por cada servidor.
Também foram encontrados processos em que mesmo os policiais informando uso de câmeras corporais, o judiciário entendeu que não era necessário requisitar. Em um dos casos a juíza considerou que a palavra dos PMs era suficiente, porque o réu havia confessado o crime. Em outro, um dos policiais disse que o acusado ofereceu dinheiro para que não fosse preso por tráfico. Mesmo com a informação de uso de câmeras — e com o réu negando o crime e a tentativa de suborno — nem a promotoria nem a juíza requisitaram as imagens para emitirem seu veredicto pela condenação.
Em um terceiro, houve solicitação de imagens autorizada pelo TJ-SP, mas a PM não forneceu e ficou por isso mesmo. A pesquisa também encontrou casos em que as filmagens enviadas pela PM não correspondiam às da abordagem e outros em que o material foi entregue de forma incompleta ou sem áudio, por exemplo.
Abusos ignorados
Em nenhum dos 28 casos houve requisição das imagens durante a audiência de custódia — instituída para que toda a pessoa presa seja levada diante de um juiz para verificar a legalidade, a necessidade e se houve violência no momento da prisão. A dupla de pesquisadores concluiu que as gravações são muito mais solicitadas para confirmar ou questionar a culpa da pessoa que foi presa e acusada de tráfico do que para verificar eventuais violações e abusos perpetrados pelos agentes públicos.
Um exemplo é o caso de Evandro*. Ele disse que três policiais invadiram sua casa e o agrediram junto com seu irmão, que tinha corrido da abordagem, em agosto de 2022. “Eles entraram, eu tava deitado. Quando eu acordei, eles estavam batendo em meu irmão. Eles colocaram nós dois no quintal, jogaram nós dois no chão, deram bicuda, pisaram na minha cabeça, continuaram batendo em nóis. Me jogaram de cara no chão e pisaram na minha cabeça, deram soco no meu olho, enquanto eu gritava pra eles pararem”, declarou.
Os policiais disseram que Evandro “se fez de desorientado” e resistiu à abordagem, por isso “foi necessário o uso de força progressiva para se quebrar sua resistência”. Os PMs alegaram que Evandro negou atendimento médico e a juíza na audiência de custódia determinou apenas que a Corregedoria da corporação fosse oficiada para “tomar as providências cabíveis”. Não há nos autos exame de corpo de delito do homem.
Imagens atrasadas e incompletas
Ao longo do processo, o advogado dele pediu as imagens das câmeras corporais, que só vieram a ser fornecidas, segundo ele de forma incompleta, em maio de 2023 — ou seja, cerca de 10 meses depois. A defesa alegou que, ao contrário do que os PMs disseram, seu cliente foi atendido em pronto-socorro e pediu a complementação das imagens, pois as enviadas estariam sem som e se tratam de gravações de momento posterior ao da abordagem.
A juíza concedeu o pedido, mas a PM afirmou que os outros registros não foram encontrados porque o soldado que participou da ocorrência tinha sido transferido de batalhão. Evandro foi absolvido do crime de tráfico porque a juíza entendeu que não ficou comprovada sua participação, ao contrário de seu irmão. Contudo, a parte das denúncias de agressão ficou sem possibilidade de comprovação.
“Se na audiência de custódia já fossem solicitadas as imagens, pelo menos haveria um prazo para que elas não se percam depois de 90 dias”, pontua Gorete, já que esse era o prazo mínimo para a PM manter armazenadas as ocorrências de rotina [do turno policial completo].
Em 2022, as gravações indicadas como de interesse policial (qualquer interação com o público) poderiam ficar salvas em até um ano. “O que a gente viu foi que as imagens acabam sendo solicitadas já lá na frente, na fase processual ou na parte das alegações finais [a última oportunidade de convencer o juiz de condenar ou absolver o réu]”, afirma.
O novo edital proposto e homologado na gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) este ano tem a previsão de manter o armazenamento em até 120 dias e as ocorrências vão ser gravadas apenas de forma intencional pelos policiais, o que é considerado um retrocesso por especialistas — esses novos equipamentos ainda não estão em funcionamento.
Para a Gorete, com essa nova disposição de registro, é possível que cada vez menos sejam fornecidas imagens aos processos. “Se ficar a cargo dos policiais escolherem os casos e as situações em que eles vão acionar, o que pode acontecer é a defesa ou a acusação solicitar, o juiz determinar e o batalhão falar ‘olha, esse caso não teve introdução de imagem’”, alerta.
“Aí a gente vai ter que analisar como é que os atores do sistema de justiça vão reagir: se eles vão começar a cobrar e pressionar os policiais a terem que acionar a câmera em qualquer ocorrência que tiver”, diz a pesquisadora.
Ela aponta a necessidade de o sistema de justiça também se engajar para coibir violações. “É um recurso para melhorar o conjunto probatório, mas também para atuar de uma forma mais transparente com relação à polícia. Então, ter maior controle externo, poder cobrar melhor qualidade da abordagem. Porque a gente vê que se houvesse uma atuação criteriosa dos atores do sistema de justiça, talvez a polícia tomasse mais cuidado ou tivesse maior compromisso de dar transparência à sua atuação, à forma como faz a abordagem, os flagrantes.”
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) sobre os casos citados. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte nota:
A Polícia Militar é uma instituição legalista e opera estritamente dentro de seu dever constitucional, seguindo protocolos operacionais rigorosos. Além disso, as imagens captadas pelas Câmeras Operacionais Portáteis (COPs) integram o conjunto probatório de todo Inquérito Policial Militar – IPM, sendo compartilhadas com os órgãos de controle mediante requisição. A Corporação é comprometida com o armazenamento dessas imagens e tem atuado para melhorar ainda mais sua custódia e operacionalização. Prova disso, foi a assinatura de contrato para aquisição de 12 mil novas câmeras corporais. O novo contrato, além de aumentar a quantidade de COPs no Estado, agrega mais funcionalidades à tecnologia, que terá imagens e som com qualidade superior. Somado a isso, proporcionará mais celeridade no compartilhamento dos registros com os órgãos externos.
Também questionamos as assessorias do MP-SP e do TJ-SP sobre as situações descritas e existência de protocolos de atuação sobre casos em que policiais estejam usando câmeras nas fardas.
A assessoria do tribunal não respondeu a pergunta e enviou a seguinte nota:
O Tribunal de Justiça de São Paulo não emite nota sobre questão jurisdicional. Os juízes têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos processos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente.
Já o MP-SP não retornou até a publicação. O espaço segue aberto.
*Os nomes foram trocados para preservar as pessoas.
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