ICL Notícias

Por Catarina Duarte — A Ponte

Um trabalho acadêmico, apresentado por um capitão à Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO) do Exército, no Rio de Janeiro, recomendou uma intervenção dos militares como “poder moderador” na política brasileira para enfrentar o Partido dos Trabalhadores (PT). No texto, o partido é descrito como uma “organização criminosa” ligada ao PCC (Primeiro Comando da Capital) que “deixou o estado à beira do fracasso” para implantar uma “revolução socialista”.

Intitulado “Partidos políticos no Foro de São Paulo: uma ameaça à segurança nacional” , o estudo foi apresentado em 2020 pelo capitão Diego Pereira Salgado e resgatado na semana passada por uma postagem de Piero Leirner, professor de Antropologia da Universidade Federal de São Carlos (UFscar) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

O capitão Salgado segue na ativa: recebe salário de R$ 16.351,65, segundo dados do Portal da Transparência do governo federal, atualizados até maio. Neste ano, o militar foi aprovado no processo seletivo da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme).

Foro de São Paulo, Farcs e ‘gayzismo’

O texto apresentado pelo capitão não está disponível no site da Biblioteca do Exército. Na página Internet Archive é possível encontrá-lo em duas contas: na Guerra_Cultural (onde o trabalho foi publicado em 2021) e na página Biblioteca do Professor Olavo (disponível desde fevereiro deste ano).

O estudo se baseia em teorias das conspiração espalhadas há anos pela extrema direita e que já foram largamente desmentidas, centradas no Foro de São Paulo, uma entidade criada em 1990 que reúne partidos e movimentos sociais de esquerda latino-americanos. O Foro é real, mas está longe de ter o poder de comandar nações imaginado por essas visões delirantes.

Diagrama que mostraria a “teia de relacionamentos” do PT na visão do militar (Foto: Reprodução)

Além de falar sem provas de ligações do PT com o PCC, o autor menciona supostos elos entre o partido, o Foro de São Paulo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Uma ligação desmentida pelo serviço de verificação de fatos Comprova, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que, numa verificação de um conteúdo compartilhado pelo deputado federal Nikolas Ferreira (PL), mostrou que integrantes das Farc foram impedidos de participar de uma reunião do Foro em 2005, na cidade de São Paulo, por determinação da secretaria do entidade, presidida na ocasião pelo PT.

Capitão: tese golpista

No texto para a EsAO, o capitão Salgado afirma que os governos petistas teriam promovido intencionalmente uma deterioração do Estado brasileiro, com suposta perda do protagonismo internacional, em obediência aos planos do Foro de São Paulo visando à criação da União das Republiquetas Socialistas da América Latina, a Ursal — um termo inventado como piada pela socióloga Maria Lucia Victor Barbosa, mas que passou a ser levado a sério em campanhas de desinformação.

A prova das intenções destrutivas do PT seria a adoção de políticas consideradas nocivas, como as cotas para negros e indígenas nas universidades públicas, o Bolsa-Família e o que o autor chama de “gayzismo”.

O autor adverte para o risco de o Bolsonaro perder as eleições em 2022 e o PT retornar ao poder, o que voltaria a colocar o Brasil em risco. Como solução, sugere um rompimento institucional comandado pelo Exército, que deveria voltar a assumir um papel de “poder moderador”, como teria praticado em vários momentos ao longo da história da República, inclusive na ditadura militar de 1964 a 1985.

“A ausência do poder moderador do Exército após o fim do regime militar é um dos motivos que permitiram a ascensão das esquerdas, culminando em mais de uma década de governos petistas com a formação do atual estado extremamente danoso à segurança nacional”, escreve o militar.

Na conclusão do estudo, o capitão Salgado afirma que, para enfrentar as “graves ameaças à segurança nacional” representadas pela existência do PT, as Forças Armadas, “em particular o Exército”, precisam “assumir a responsabilidade de exercer o poder moderador por intermédio do intervencionismo tutelado”.

O modelo não iria impor uma ditadura, na visão militar, mas um governo tutelado pelos militares. Como parte dessa estratégia, os militares deveriam usar as escolas militares para formar civis alinhados com a sua visão de mundo, destinados a ocupar quadros no governo “para implementá-la mediante o jogo político, com supervisão militar”.

Entre os autores citados, estão o jurista Ives Gandra Martins e o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou o DOI-Codi (Departamento de Ordem Interna — Centro de Ordem de Defesa Interna) e se tornou o primeiro militar a ser oficialmente reconhecido pela Justiça brasileira como torturador.

O curso em questão é o mesmo feito pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em 1987, quando ele ameaçou explodir bombas em quartéis e no sistema de abastecimento de água do Rio de Janeiro. Embora tenha sido inocentado, a acusação o impediu de receber o diploma da instituição à época.

Militarismo e extremismo

O trabalho destoa do currículo apresentado pela escola, que costuma abordar assuntos técnicos. A instituição oferece cursos de aperfeiçoamento de dois anos, exigidos a todos os oficiais formados na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), para áreas como infantaria, cavalaria e artilharia.

Diferente de uma instituição universitária, uma escola militar não é um local que promove o debate mas que ensina doutrinas. Na visão do pesquisador Piero Leirner, isso significa que, para o trabalho ter sido escrito nesses termos, houve endosso de superiores. O professor diz que o estudo foi aprovado pela EsAO — informação que a reportagem não conseguiu comprovar, já que a escola não respondeu aos pedidos de entrevista.

O trabalho foi avaliado pelo à época tenente-coronel Emerson Rodrigues da Silva e pelo capitão Gabriel Leite Alves. A orientação foi feita pelo então capitão Guilherme Polidori Cabral. A Ponte solicitou entrevistas com todos os militares do Exército, mas não houve retorno até a publicação da reportagem.

Para Leirner, o fato de um texto defendendo uma atuação golpista do Exército ter sido aprovado numa escola militar é grave, mas não surpreendente. Segundo o pesquisador, o estudo reflete uma visão radicalizada amplamente disseminada entre setores militares que antecede a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República, em 2018. O bolsonarismo seria não a causa, mas um produto dessas ideias. “Isso vem de dentro das Forças Armadas e vai se refletir no Bolsonaro depois. Esse negócio está lá dentro faz tempo”, afirma.

A parafernália conceitual envolvendo teorias da conspiração, paranoia e ódio pela esquerda vem sendo elaborada desde os anos 70 nas Forças Armadas, segundo o antropólogo, e transmitida pelas instituições de ensino militares, como uma forma de controle das gerações anteriores em relação às mais novas, que não permite a mudança de pensamento. “Não há freio nenhum para esse processo de politização que eles [Forças Armadas] estão vivendo. O negócio está feito para ser durável”, diz o pesquisador.

Já um oficial da reserva do Exército, ouvido pela Ponte sob condição de anonimato, aponta que essas ideias golpistas estão presentes nos quartéis. “Um capitão não teria feito esse trabalho se não tivesse ouvido isso insistentemente no meio militar”, analisa. Para ele, o estudo do capitão demonstra o processo de politização, na direção de uma “direita militarista e extremista”, que tomou conta dos militares a partir do exemplo que vem de cima, dos generais e coronéis, inclusive os da ativa.

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou o Exército Brasileiro e o Ministério da Defesa solicitando entrevistas com os militares citados na reportagem e uma posição sobre o trabalho. Não houve retorno. O espaço está aberto.

 

SAIBA MAIS:

Em livro, coronel acusa Mourão e Exército de corrupção por compra de ‘megavideogame’

Deixe um comentário

Mais Lidas

Assine nossa newsletter
Receba nossos informativos diretamente em seu e-mail