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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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Carnaval: o fogo que arde e faz doer

Incêndio da fábrica Maximus tira a fantasia do desprezo pelo povo
13/02/2025 | 05h30

Desde que o samba é samba é assim. A lágrima clara sobre a pele escura desce pelas dores de quem faz uma festa, mas não é festejado. Em finais do século 19, portar um simples pandeiro podia ser considerado crime. Agora, na metade da terceira década do século 21, o pandeiro é moda, mas a festa que ele embala conta com milhares de trabalhadores e trabalhadoras inviabilizados, desrespeitados, subalternizados.

Quando uma fábrica que atende a várias escolas que abrilhantam a festa popular mais famosa do país abriga profissionais que exercem suas funções em condições sub-humanas, é a prova de que o desprezo pelo pandeiro segue com toda força. É uma sociedade que diz: vocês não merecem seriedade ou cuidado. Carnaval é coisa inútil e a vida de vocês vale menos, muito menos.

Nem vale à pena em autoridades míopes e preconceituosas que acreditam que esta celebração é apenas “oba-oba” e que a única preocupação de uma agremiação é competir, ganhar, vencer, perder, descer ou subir de grupo.

É chover no molhado dizer que o carnaval é uma atividade econômica rentável, uma indústria cheia de ouro, prata e bronze de verdade, nada de spray aerossol, mas a tinta que pinta de dourado a alegoria, de prateada a bateria e de bronzeada a fantasia precisa de muitas mãos que se revezam ou nem isso, pois dormem nos locais de trabalho, bordadeiras, costureiras, aderecistas, escultores, etc.

A esmagadora maioria sem uso de máscaras, luvas, capacetes, óculos de proteção ou qualquer EPI (Equipamento de Proteção Individual), em locais sem nenhuma ventilação e abarrotados de frascos de aerossol, espuma, plásticos, tecidos variados, cafeteiras, geladeiras, fritadeiras, maçaricos. Tudo plugado em tomadas ligadas a fiações do tempo de João da Baiana.

Por falar em João da Baiana, foi ele quem recebeu uma assinatura do senador Pinheiro Machado no couro do pandeiro e saiu pela cidade mostrando como salvo conduto sempre que era abordado pelas forças policiais que o queriam enquadrar na Lei da Vadiagem. A legislação que apenas dois anos depois da promulgação da Lei Áurea definiu como crime de “vadiagem” andar na rua sem ter comprovação de estar trabalhando. O “crime” rendia até 30 dias de prisão. O samba e os sambistas, óbvio, entraram na linha de tiro desta regra e até hoje o imaginário nacional toma o carnaval e seus desdobramentos como coisa de gente que não tem o que fazer. Samba, para uma boa parcela da população, não é trabalho.

Talvez isso explique uma fábrica funcionando colada à residências e a uma escola sem nenhuma segurança, sem área de escape, alvará do Corpo de Bombeiros, fiscalização do Ministério Público do Trabalho ou da prefeitura. São tantas camadas de erro que fica até difícil relacionar, mas a verdade é que passada a apuração do resultado das escolas de samba, todas as pessoas que montam o espetáculo que encanta o mundo somem em um buraco de esquecimento e descaso.

Escola de Samba é comunidade, força ancestral, motivo de união, aprendizado, prazer e sabedoria popular. Dentro dela está o melhor e também o pior do país. Um microcosmo com o poder de dar poder a quem é totalmente despido dele nos demais dias do ano. É patrimônio precioso da história do Brasil e quem não chorou junto com o presidente da Império Serrano, Flávio França, ao ver que foram perdidas todas as fantasias do desfile de 2025, não sabe o que é amar uma coletividade e pertencer a ela.

Aliás, este texto recebeu um título que é uma paródia ao poema de Luis de Camões, “Amor é fogo que arde sem se ver (…)”. No entanto, o trecho que mais se adequa ao sentimento de quem deixa a própria casa para dormir e trabalhar em uma fábrica de fantasias é este: “É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata, lealdade”.

E por falar nisso, nada mais enredo de escola de samba do que misturar Camões e paixão pelo carnaval. Força, Império Serrano, Unidos da Ponte e Unidos de Bangu! Força trabalhadores e trabalhadoras que fazem o carnaval ser a festa mágica e encantadora que é.

 

 

 

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